quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Talvez ela esteja a dormir

Para entrar numa fotografia, temos de atravessar uma espessa camada de silêncio. Vários bombeiros seguram de forma delicada uma Madonna de mármore, como se ela fosse uma mulher de carne e osso. Retiraram-na dos escombros da sua morada (seria uma igreja de paredes frias aquecidas por promessas e trémulas chamas de vela ou um palácio de uma família nobre e decadente, há muito desabitado?). A terra que abanou zangada nunca conheceu o peso dos seus passos. O seu corpo irresponsável é uma pedra com vida emprestada e os seus lábios contêm um dicionário de palavras por proferir. A sua face pálida não abre os olhos à luz, como se esta magoasse. Não olha o caos da paisagem destroçada. Não vê os capacetes vermelhos cor de sangue. Não ouve as sirenes dos carros dos bombeiros, nem grita por ajuda. Podia ser um cadáver lívido, de uma fragilidade tocante, da cor da temperatura do medo. É uma deusa de mármore, bela e distante, que sobreviveu ao sismo como um milagre. As suas mãos de pedra não procuram consolo nas enormes mãos com luvas que a transportam com cuidado, não fossem despertar a sua humanidade adormecida. Parecem mãos desajeitadas, apesar dos gestos. Seguram a sua cabeça como se ela fosse habitada por pensamentos e quase tapam os seus olhos já cerrados. Amparam-lhe a nudez do peito de mármore onde não bate um coração que cora, como se desejassem tapá-la. Talvez ela esteja a dormir e não se queira lembrar da sua vida anterior. Talvez veja muito mais do que nós, porque permanece de olhos fechados. As estátuas estão habituadas a esperar. Uma fotografia revela, muitas vezes, a inutilidade das ansiosas palavras.

fotografia de Max Rossi