sábado, 4 de agosto de 2012

O paraíso dos cães


Há frases que nos seguem como cães obedientes, mesmo sem trela. Outras, que vêm connosco para casa dentro da transportadora do gato, sem ele dar por isso. No outro dia, no hospital veterinário, uma criança e a sua mãe visitavam uma cadela de 17 anos, recém-operada. A mãe explicou à filha que se a cadela fosse uma pessoa, já teria mais de 100 anos. E se não ficasse boa, era melhor ir para o céu, porque o céu também precisa de cães.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Dilema diabólico

A lógica consegue colocar em contradição o interlocutor mais poderoso. Deus, por exemplo. Sobretudo, se for o diabo a lançar-lhe um desafio que põe em causa a sua omnipotência. O diabo pede a Deus que crie uma pedra tão grande, que ele próprio não a consiga levantar. E Deus fica com um problema em mãos: se não conseguir levantar a pedra por ele criada, deixará de ser omnipotente; se conseguir, foi porque não foi capaz de criar uma pedra suficientemente grande. Mas deve haver soluções para este paradoxo. Se fosse uma criança, diria: Deus não dá ouvidos ao diabo, por isso este problema não existe.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Velório literário


Volta e meia, acontece. E nos últimos tempos, aconteceu a Tonino Guerra, Ray Bradbury, Antonio Tabucchi e Carlos Fuentes. Quando um escritor morre, as livrarias apressam-se em arranjar-lhe um pequeno canto onde reunem todas as edições possíveis e imaginárias da sua obra. Muitas delas, subitamente resgatadas a um esquecimento que cheira a mofo, vêm de caves e depósitos e aparecem com roupas (leia-se capas) fora de moda. Apesar dos livros se sentirem orfãos, tentam não chorar, para não desbotar a voz do seu autor. Logo agora que ele está mais vulnerável é que ficou tão exposto aos olhos do mundo, com o seu frágil corpo de letras feito. Este velório com caixão aberto, como lhe chamou uma livreira amiga, tem como pretexto honrar a memória do defunto. Mas enquanto as personagens se vestem de luto pelo autor, as livrarias esperam vendê-lo mais. Sabem que os vivos dão valor aos mortos.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Vestido ruidoso


Escrever um post depois de uma longa ausência pode ser embaraçoso, um pouco como se o silêncio nos tivesse despido. Quando o tentamos vestir discretamente com algumas palavras, parece que soa como num vestido ruidoso. Mesmo sendo apenas um lençol branco.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A namorada da tristeza

A partir de hoje, além de namorada do Ludwig, sou também namorada da tristeza (palavra de que sempre gostei, talvez por rimar com beleza, mas não com certeza). E ao dividir a tristeza por dois, multiplicando palavras, talvez confirme esta suspeita: escrever pode ser triste, mas é melhor que ser feliz. http://www.escreveretriste.com/

quarta-feira, 23 de maio de 2012

A roleta do amor



Jackie (uma loiríssima Jeanne Moreau) e Jean (o belo Claude Mann) conhecem-se na mesa da roleta no casino e rapidamente se tornam cúmplices de jogo (o da roleta e o do amor). A cintilante Baia dos Anjos, entre Cannes e Mónaco, é o cenário desta história de paixão e fascínio filmada por Jacques Demy, onde a tensão do jogo se insinua e reflecte na relação do casal, sendo a roleta o terceiro elemento deste curioso triângulo. A roleta é um jogo de sorte e se a sorte não obedece a estatísticas, o amor não segue a lógica. Jackie é uma jogadora solitária, que vive de uma forma vertiginosa e o vício do jogo é a sua maldição. Pelo jogo, tem apostado (e perdido) tudo: o casamento, o filho de 3 anos, as jóias, o bilhete de comboio para Paris e os seus princípios morais. Jean, um modesto empregado bancário, esteve noivo mas desistiu de uma vida bem arrumada, sem risco nem surpresas, embora pensasse que o tipo de existência irreal que Jackie leva (ela lembra-lhe um personagem de romance) só existisse no cinema e nos livros. Mas o glamour exterior de Jackie (sempre elegantemente vestida por Pierre Cardin) dissimula um enorme vazio e ela, qual anjo perdido, acaba por se confessar “apodrecida no interior”. O vício leva-a a mentir, a roubar, a trair, a fazer batota e a apostar tudo o que tem. Será que Deus reina sobre os números? questiona Jackie, recordando que a primeira vez que entrou num casino sentiu o mesmo que quando se entra numa igreja. O jogo é a sua religião e dá-lhe um prazer simultaneamente erótico e teológico. Jackie e Jean rodopiam sem sair do lugar, ao som do piano inquieto da banda sonora de Michel Legrand, num tempo suspenso até a dança hipnótica da roleta parar e indicar um número, que dita a sorte e muda o destino dos jogadores. Jackie sente fascínio pelo mistério dos números e da sorte e por essa existência feita alternadamente de luxo e pobreza. A sua dependência torna-a vazia e vulnerável e quando não tem dinheiro, joga sozinha nos quartos de hotel com a miniatura de roleta que leva na sua mala. Jean é um amuleto para Jackie, traz-lhe sorte, como uma ferradura. Num momento têm três milhões de francos, no seguinte, apenas dinheiro à conta para beber um whisky. O vício do jogo é o obstáculo que impede a concretização desta história de amor marcada pela ambiguidade e sujeita a constantes volte-faces. Juntos perdem todo o dinheiro e Jean coloca-a entre uma terrível escolha: o amor ou as mesas de jogo. Mesmo sabendo que nunca deixará de jogar, Jackie abandona o casino e segue-o no último momento. Afinal, como foi dizendo a Jean ao longo do filme, não devemos virar as costas à sorte quando ela nos aparece.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Acabado de ouvir

E assim passamos os dias, a fingir que vivemos.

sábado, 12 de maio de 2012

A verdade da mentira

Ensina-nos a lógica que uma proposição não pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ou seja, ser e não ser em simultâneo. O princípio do terceiro excluído elimina de modo implacável a possibilidade de uma terceira resposta, ignorando uma aparente contradição e empobrecendo o sentido das coisas. Diz-nos o historiador que a verdade e a mentira têm nuances e aceita uma verdade contaminada pela mentira. Como esta: um documento sobre o século XII, falsificado no século XIII, é um falso documento sobre o século XII, mas um verdadeiro documento sobre o século XIII.

domingo, 6 de maio de 2012

Mona Lisa à janela

Da esplanada do velho café de bairro, saboreando um chá de limão com direito a bule e a vapor, vi do outro lado da rua uma mulher à janela, que tinha atrás de si uma paisagem na parede. Era a Mona Lisa, na sua pose estática, como se estivesse, nesse preciso momento, a fazer de modelo para Leonardo da Vinci, ocultado pela parede. 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Old boyfriends


Estes old boyfriends não ficaram perdidos no bolso do sobretudo, como na canção de Tom Waits. Ela guardou uma fotografia dele a cores, em pose heróica, dentro de O Livro do Filósofo (por acaso terá sido na passagem em que o autor aconselha a que se escreva de uma forma totalmente impessoal e fria, pondo de parte os nós e os eus?). Desconhecia que ele tinha uma fotografia dela, a preto e branco, entre duas páginas de A Crítica da Faculdade de Julgar (quem sabe, nas páginas dedicadas ao Belo ou ao Sublime). A embriagante lucidez das palavras de Nietzsche e o pensamento crítico kantiano foram os esconderijos imperfeitos que encontraram para a memória que os persegue. Um lugar com tamanho de livro de bolso, onde repousam fantasmas de papel.

sexta-feira, 30 de março de 2012

O livro da ilha


Quando um dia perguntaram a G. K. Chesterton que livro gostaria de ter consigo, se fosse um náufrago numa ilha deserta, o provocador pensador deu uma resposta desarmante, daquelas que por vezes só as crianças sabem dar. A pergunta podia ser embaraçosamente difícil para alguém, como ele, que devorava livros como quem saboreia bolos com creme (se os livros engordassem estava explicado o seu imponente e pesado corpo) e ainda lhes entornava chá em cima das anotações. Havia uma série de respostas imagináveis, como A Bíblia (será que por essa altura já se tinha convertido ao catolicismo*?), A Ilha do Dr. Moreau, do seu amigo H. G. Wells ou um ensaio filosófico de São Tomás de Aquino. Mas Chesterton não raciocinou nem como um erudito nem como um místico e, confiando na lógica, deu a resposta que lhe parecia evidente: um manual de construção de botes. Escolheu um livro, não para se evadir espiritualmente, mas fisicamente da ilha deserta. Deixou-nos imaginar um teórico distraído, não à sombra de uma palmeira lendo um clássico da história da literatura como Robinson Crusoé, D. Quixote ou Moby Dick, mas de mangas arregaçadas a construir o seu meio de fuga. Segurando nas mãos um barco feito de papel, até este se transformar lentamente em madeira e lhe permitir retomar a civilização, de regresso a Inglaterra, a ilha para onde levou todos os seus livros.
* um obrigada ao fiel leitor que detectou o meu erro de cariz religioso, já eliminado

domingo, 18 de março de 2012

Esta noite em Samarcanda

Talvez por vontade do destino, já tropecei três vezes nela. Não interessa se na história original se trata de um rei, de um príncipe ou de um califa, nem se o outro personagem é um cavaleiro, um jardineiro ou um grão-vizir. Na praça de uma cidade, um cavaleiro vê a morte fazer-lhe um sinal e aterrorizado, vai ter com o rei, pedindo-lhe emprestado o mais veloz dos seus cavalos, para que possa fugir para bem longe, até Samarcanda. O rei convoca a morte ao palácio para lhe perguntar porque assustou o seu cavaleiro. E a morte, surpresa, responde-lhe: "Não lhe quis meter medo, mas espantou-me vê-lo aqui, sabendo que esta noite temos encontro marcado em Samarcanda”. Sedutora história, esta, em que o destino é aquele que escolhe em nosso nome. O rei tem o poder de convocar a morte e pedir-lhe satisfações, como se não a temesse. Mas a poderosa morte, aqui disfarçada de figura humana, também não sabe tudo. Não sabe, por exemplo, como se chega até ela - também precisa da cumplicidade dos vivos. O cavaleiro dá ao gesto da morte um sentido que ele não tinha, para que o destino seja corrigido e se cumpra. Caminha na sua direcção, convencido de que lhe está a fugir. O destino é mais teimoso e menos impaciente do que qualquer humano e prefere, por vezes, o caminho mais longo. Não vai pela auto-estrada, porque conhece os encantos das estradas secundárias.

domingo, 11 de março de 2012

Rapariga com saco de plástico


Nesta fotografia austera mas luminosa, em que usa a sua filha como modelo, o holandês Hendrik Kerstens imita os retratos do pintor Vermeer, onde uma figura feminina de rosto iluminado se recorta na paisagem. Há quem afirme que Vermeer usava câmaras obscuras para pintar, daí a perspectiva fotográfica dos seus retratos de composição geométrica, feitos de jogos de luz e sombra. A sofisticação visual de Vermeer está presente na fotografia de Hendrik Kerstens, como se a rapariga de um dos seus quadros se tivesse refugiado numa imagem de outro tempo, onde objectos mundanos se desbanalizam e ganham um tom solene. Aqui, o saco de plástico do supermercado simula ser a touca de uma empregada doméstica. Mas há mais: o rolo de papel higiénico, o vaso de plástico, o guardanapo de pano, a rede para o cabelo. Entre a contenção e a revelação, por dentro da luz ou tentando sair da insondável escuridão, vemos um rosto, iluminado por um enigma, pedido emprestado ao século XVII. Se abrissemos a porta desta fotografia, estaríamos à espera de encontrar lá fora uma tempestade a rodear a casa. Nesta imagem sem data possível, hesitamos entre a lentidão da pose obediente do modelo e o saco de plástico de uma sociedade com pressa em tudo consumir, até a arte. Mas não será essa a função da arte: mostrar-nos as respostas que a vida não dá?

segunda-feira, 5 de março de 2012

Casa assombrada


William Friedkin, o realizador de O Exorcista, tinha-se cruzado com L’Empire des Lumières no Moma. Foi a luz dramática do candeeiro de rua, por contraste com o azul do céu do quadro de René Magritte, que inspirou o candeeiro colocado à porta da casa onde se dão estranhos acontecimentos e que seria a imagem do cartaz do filme. No perturbante quadro, o fantástico resume-se a este paradoxo visual: a simultaneidade do dia e da noite. Será dia? Será noite? Quem estará em casa, no andar de cima? A luz natural e a luz artificial estão presentes, como se a noite e o dia tivessem deixado de se esconder um ao outro, revelando-se nesta imagem que parece ter vida dupla. Apesar de tanta luz, há algo de incómodo na temperatura da paisagem, que provoca um arrepio como só os fantasmas sabem. Talvez seja a descoberta de que, mesmo abrindo a porta à luz, não conseguimos expulsar os nossos demónios.

A sombra de uma dúvida

No seu livro Amor Líquido, Zygmunt Bauman refere o filósofo alemão Odo Marquard, a propósito da descoberta de um parentesco etimológico entre zwei (dois) e Zweifel (dúvida). O dois surge na raiz da dúvida, é a semente insidiosa da incerteza. É o primeiro número par, o número casal, o “nós” mais pequeno do mundo, alternando entre a mais complexa das unidades (o eu complementar) e a mais radical das divisões (o adversário que constantemente alicia para um combate). O dois introduz a suspeita, como uma sombra que nunca desaparece: é o princípio de todas as dúvidas.

sábado, 3 de março de 2012

Casas vizinhas


Tenho um particular gosto em espreitar as casas dos meus vizinhos de prédio e acredito que o motivo transcende a mera curiosidade: fascina-me a forma como ocupam, de forma tão diferente da minha, a possibilidade do espaço e sua tipologia. Gosto de ver o que fizeram à arquitectura transparente, o modo como preencheram o vazio exterior do espaço. Quando apanho uma porta semi-aberta, lanço um olhar de soslaio à medida que subo ou desço as escadas. Vejo pouco, mas o suficiente para alimentar uma imaginação mais concreta. E depois, há aquelas casas onde já entrei ou estive várias vezes. Para um dos vizinhos, não foi evidente o meu quarto ser o seu quarto; noutro andar, a minha sala forrada a estantes é o quarto de uma criança que gosta de pintar as paredes; noutro ainda, a sala mudou de verbo e passou de “estar” a “jantar”. Sempre que estou numa casa vizinha, é como se alguém tivesse entrado em minha casa durante a minha ausência e transformado tudo, apagando à pressa todos os vestígios da minha presença. Como se um ser estranho morasse na minha casa. É aí que percebo que também habitamos imagens.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Humanos por exclusão



Parece que escrevendo (repetindo) algumas palavras ou letras sem qualquer significado e estranhamente distorcidas, que precisamente uma máquina chamada computador escreveu, conseguimos provar, por exemplo no registo para abrir uma conta no gmail ou nas caixas de comentários de alguns blogues, que não somos robots mascarados de humanos. Até parece uma brincadeira, ser preciso tão pouco para provar a nossa cada vez mais duvidosa humanidade.

Incompleta nudez

Gostava de saber se ele ainda é vivo, o homem de idade incerta, mas ainda jovem, que no Maio de 68 caminhou nu, completamente nu, com uma nudez sem culpa e o corpo ligeiramente bronzeado, em direcção à Bastilha. Ignorou quem o olhava, ignorou os vestígios do gás lacrimogéneo, ignorou as barricadas. Despojado de referências, despido de signos, sem nome ou bilhete de identidade, entrou sem qualquer resistência para o carro da polícia. Mas a neutralidade da sua nudez não foi suficiente. Conseguiram descobrir que tinha incendiado a sua casa, apagado todos os vestígios do seu passado e a sua nova morada era o silêncio. Mesmo assim, conseguiram vesti-lo com um pouco do seu passado. Talvez a verdadeira nudez só seja possível na invisibilidade.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Arqueologia invisível


Reencontro, aqui e ali, pessoas do meu passado (como se este fosse um lugar) que me atribuem frases ou gestos de que não me recordo, embora acredite ter sido a sua autora. Vencido um certo desconforto - parece que estamos a falar de uma terceira pessoa, ausente - sobra uma sensação de quase culpa por não ter guardado essas memórias devidamente, a que se junta a súbita consciênca de que a memória não nos pertence. O nosso passado assemelha-se a uma civilização perdida, da qual se encontram espalhados pelo mundo vestígios, não arqueológicos, mas mnemónicos, que nos transformam para sempre em seres incompletos.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Folie à deux


Apesar de ser um conceito da psicologia clínica e da psicanálise e dizer respeito a sintomas psicóticos como a perda de contacto com a realidade, a estados de delírio e à incapacidade de reconhecer comportamentos estranhos ou bizarros, folie à deux parece ser uma excelente definição para o estado de paixão amorosa. Dois seres ligados por uma alienação mútua, uma loucura a dois num mundo fora do mundo.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Uma falsa barba branca


Não me lembro ao certo quando foi. Houve um dia em que vi a verdade (em caixa alta) morrer diante dos meus olhos. Senti-me como as crianças que descobrem que o Pai Natal, afinal, não existe porque, apesar de ter roupas e corpo, não passa de um familiar disfarçado (e que foi traído pelos sapatos, pelo relógio ou pela falsa barba branca). Pensava que a descoberta da não existência do Pai Natal era o fim de uma ilusão e que a morte da verdade era o fim da verdade. Enganei-me: era apenas o fim de outra ilusão.