terça-feira, 15 de dezembro de 2009

O coração sem casa

Não deve ser por acaso (nada é por acaso) que pudor rima com dor. Apesar de ser universal, a dor é egoísta. Ninguém pode sentir a minha dor por mim. Então, e perante esta certeza, sobram as perguntas. Como se mede ou pesa a intensidade do luto? Como se espreita a morte nos olhos do outro? Como se vê o negro invisível que lhe veste a alma? Escrito sem a anestesia do tempo, em carne viva e apenas almofadado pelas palavras, o Diário de luto, agora editado pelas Edições 70, sobreviveu mais de 30 anos à morte do seu autor, que apenas sobreviveu 2 anos e meio à morte da sua mãe. Foi em 25 de Outubro de 1977 que Roland Barthes começou o seu Diário de luto, um dia depois da morte da sua mãe, a quem ele trata carinhosamente por mam. Sabemos que tudo aquilo não foi sentido e escrito por um personagem de romance (como o autor nos pedia para lermos o seu Roland Barthes por Roland Barthes), daí o pudor de ler a dor do outro. O Diário de luto recorda-nos que o luto é diário. A vida encarrega-se de nos ensinar que ele não termina, talvez porque ela própria continue indiferente, embora diferente. Ao longo dos dias e das páginas do livro, o autor é confrontado com o carácter iniciático de cada experiência, de cada gesto, agora numa nova ordem cronológica. Tal como a vida, a morte traz o simbolismo da primeira vez e a sua asa negra ensombra todos os dias do calendário. O luto escreve-se na simbologia das datas. É a primeira noite de luto, o primeiro domingo, o regresso à casa vazia, o primeiro dia de aniversário (12 de Novembro) do autor, a primeira neve em Paris sem a presença da mãe, o começo do segundo luto, depois de voltar a mexer nas suas fotografias, até que as novas vivências cumprem o ciclo do primeiro aniversário da sua morte e culminam com o receio de que ela morresse uma segunda vez. A dor das estreias será substituída pelo receio da repetição. Ao longo dos dias, a descoberta da banalidade no seu “luto caótico” traz-lhe um novo olhar sobre o apartamento onde vivia, as pessoas na rua, a ida à pastelaria, a repetição de rituais quotidianos sem a presença da sua mãe. O mundano amplia o luto, ele próprio uma lente que olha para o mais irrelevante pormenor do silencioso quotidiano, até o tornar do tamanho do mundo. Esta solidão definitiva alterna com momentos de distracção e traz a infelicidade à dor, a culpa à distracção e o preto a todas as cores. O ser que morre não se torna apenas invisível, ele torna-se mudo e Roland Barthes descobre a sua surdez localizada, por já não ouvir a voz da mãe, de quem tratou nos últimos meses de vida (e que se tornou toda a vida transparente para que ele pudesse escrever). Seria ela sua mãe ou sua filha? O luto é um caminho: “caminho como posso através do luto”. O luto é um país raso e desolado, onde os momentos de desejo de viajar ou de escrever emergem, anacrónicos e em baforadas, do pais do antes. O luto é “a ausência de refúgio no imaginário” para o seu desgosto caótico e errático, que por isso não se gasta. Talvez a palavra luto seja uma expressão demasiado psicanalítica, daí que o autor escreva: “Não estou de luto. Tenho dor” e confesse que escreve “para combater a dilaceração do esquecimento”. O luto é uma ferida, “a presença da ausência”, a solidão de não ter ninguém em casa a quem se possa dizer a que horas se regressa. As viagens e a vida no exterior fazem-no sofrer muito mais, daí o desejo de voltar para casa, mesmo sabendo que ela não está lá, nem que seja para habitar o seu desgosto e evitar que as flores murchem. O desgosto torna-se cada vez menos escrito, porque ganhou a condição de eterno. Uma pergunta, sem esperança de resposta, datada de 28 de Novembro, resume a culpa de quem sobrevive à morte do outro: “Poder viver sem uma pessoa que amávamos significa que a amávamos menos do que julgávamos”? É isso o luto: viver uns dias como se estivéssemos mortos, outros espantados por termos voltado a viver (a rir, a comer, a ter preocupações mundanas e fúteis, em suma: a esquecer), mas ainda e sempre com um medo retrospectivo do que aconteceu. Talvez não se deva lutar contra o luto. Estar de luto é deixar de procurar o amor de quem morreu e aceitar que o mundo será para sempre imperfeito. É fechar uma porta para a luz e descobrir que não há lugar onde o coração se possa sentir em casa.

Roland Barthes, Diário de luto, Edições 70, Outubro de 2009, 18 €