Poderá uma esquina influenciar uma frase? O entardecer num bairro determinar um poema? Ou um pátio com madressilvas inspirar uma metáfora? A resposta a estas e outras perguntas encontra-se no livro “A Buenos Aires de Jorge Luís Borges”. O seu autor, Carlos Alberto Zito, estuda a obra do escritor argentino há mais de 25 anos e este livro é a melhor prova disso. Mas comecemos pelo princípio, ou seja, o dia 24 de Agosto de 1899. Em Buenos Aires, no nº 840 da Rua de Tucamãn, nasceu um bebé a quem foi dado o nome de Jorge Luís Borges. Curiosamente, o apelido Borges significa “burgo”, ou seja, o habitante da cidade. Como mais tarde diria o poeta, “nasci no coração da cidade”. O apelido e o local de nascimento são uma explicação possível para Buenos Aires ter ocupado toda a vida o seu coração. A família Borges mudou-se para o Bairro de Palermo cerca de dois anos depois e foi aí que Georgie (como era tratado pela família), cresceu “num jardim, por detrás de uma grade com lanças, e numa biblioteca de ilimitados livros ingleses”. A biblioteca do pai, advogado e filósofo anarquista, revelou-lhe o poder da poesia e autores como Oscar Wilde, Lewis Carroll e Mark Twain. Quanto à cidade que via através do gradeamento, esta exerceu desde sempre (e talvez por isso mesmo), um enorme fascínio sobre ele. Nas suas raras saídas para o exterior visitava frequentemente o Jardim Zoológico, onde contemplava com adoração o tigre real amarelo. Muitos anos mais tarde, em 1921, depois de viver em Genebra, Lugano, Sevilha e Madrid, Borges regressa a Buenos Aires, ansioso por reencontrar a cidade que fervilhava na sua imaginação. Mais tarde considera este momento do regresso o mais importante da sua vida. Em 1923, escreve o primeiro livro de poesia, cujo título traduz os seus sentimentos pela cidade: “Fervor de Buenos Aires”. Nele refere-se às ruas do bairro como “quase invisíveis de tão habituais” e confessa que “as ruas de Buenos Aires estão já dentro de mim”. Não lhe interessam as avenidas, mas sim a Buenos Aires profunda, dos subúrbios, onde não se cansa de descobrir beleza, mesmo onde outros vêem fealdade. Porque o jovem culto que passa horas na biblioteca do pai e o jovem fascinado pelo mundo dos marginais que “deambula pelos subúrbios e espia os submundos da cidade, onde se impõe o tango rude e de bordel” são uma e a mesma pessoa. Ao longo das páginas do livro, povoadas com inúmeras fotografias a preto e branco, vamos espreitando, num irresistível exercício de voyeurismo, os lugares que atraíram e marcaram o escritor. Passo a passo (neste caso, página a página), percorremos as casas onde viveu, o espaço em que nasceram os seus livros, os bairros das suas longas caminhadas a pé, as livrarias e cafés que frequentou, as duas bibliotecas onde trabalhou e até o parque onde foi surpreendido pela polícia a beijar uma mulher. Em suma, fazemos uma visita guiada a todos os cenários das suas obsessões. Seguindo os seus passos nesta “ cidade de ruas direitas e solitárias, com horizontes incandescentes”, percebemos a estreita relação afectiva e dialéctica que se estabeleceu entre o escritor e a sua cidade natal. Buenos Aires determinou, de forma decisiva, o escritor e a sua escrita. Como Borges reconheceu “ se tivesse nascido em qualquer parte, (…) não teria sido eu a nascer ali, mas uma outra pessoa.” Tal como, inversamente, Jorge Luís Borges recriou Buenos Aires, tornando-a uma cidade literária. Para o efeito, utilizou todos os seus elementos: a luz, a arquitectura dos edifícios e até os meios de transporte. Na mão de Borges, o pátio é “o declive por onde se derrama o céu na casa”. As casas de bairro são “esse monumento da nossa arquitectura instintiva” e os arrabaldes, “monótonas lembranças de um quarteirão”. A paixão por uma mulher ( teve várias) fê-lo vaguear por certas ruas da cidade, onde celebrou entardeceres, lugares solitários, recantos sem nome e o som de guitarras num pátio. Em cada esquina, encontramos reminiscências de outras histórias. À Buenos Aires lírica e frágil dos poemas repletos de imagens nostálgicas contrapõe-se à Buenos Aires histórica e misteriosa dos ensaios, contos e textos de ficção. A partir de 1944, Borges instala-se com a sua mãe definitivamente na Rua Maipú, nº 994. Aí viverá durante 41 anos (excepto durante os três anos do seu casamento com Elsa Astete Millán) e nesse apartamento escreverá O Aleph, O Fazedor, O Relatório de Brodie e O Livro de Areia, entre outros. Em 1955 é nomeado director da Biblioteca Nacional. Sobravam-lhe livros (tinha à sua disposição mais de 900 mil), mas faltava-lhe a vista. Os dois directores anteriores tinham igualmente cegado, como se de uma maldição se tratasse. A imensidão de uma biblioteca que jamais poderá ler assemelha-se a um castigo dos deuses. Tacteando com a sua bengala as ruas da cidade que já não reconhecia, percorria todos os dias a pé o caminho para a biblioteca, geralmente sozinho. As ruas da sua cidade tinham-se tornado invisíveis, ligadas pelas trevas. “Os olhos já não podem ver os livros nem a cidade, mas estão já minuciosamente fixados na sua memória e dela continuarão a brotar – embora anacrónicos – textos e poemas”. Com a bússola da memória, caminhava na cidade que se transformou numa labiríntica ilusão e das visões do interior das pálpebras nasciam as suas arquitecturas de palavras. Como tinha “Buenos Aires dentro dos meus olhos”, para Borges os lugares não mudaram desde 1955. Continuou a ver o que já não existia e deixou de ver o que existia. Não assistiu ao envelhecimento da cidade, dos rostos familiares nem do seu próprio. Não viu o que o tempo foi roubando (árvores, pátios e bancos de jardim) nem acrescentando (edifícios, lojas, carros e arranha-céus). Da contemplação à evocação, a cidade cristalizou-se. Foi distorcida pelo filtro da memória e retocada pelo pincel da imaginação. Tornou-se uma imagem de si própria, “uma Buenos Aires pretérita, distante no tempo umas quatro ou cinco décadas”. A Buenos Aires que amou como a uma mulher e onde gostava sempre de regressar, inspirava-lhe também sentimentos menos nobres, como o desejo de exclusividade. Por isso, recomendava às pessoas interessadas que visitassem outras cidades da América Latina. A ideia de alguém ficar encantado com Buenos Aires enchia-o de ciúmes. E tinha toda a razão. A partir do momento em que deixou de (a) ver, Buenos Aires tornou-se sua. Porque como escreveu no seu derradeiro livro, Os Conjurados, “só é nosso o que perdemos”.
texto originalmente editado no DNa