segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Línguas de gato

Desconfio que grande parte do mistério do gato se deve ao facto de não falar. Só pode ser por causa do seu imperturbável silêncio que gostamos tanto de escrever sobre ele. Domesticado e independente, interessante e interesseiro, ambíguo e contraditório, o gato é matéria de estudo para uma vida inteira. Talvez também por isso, seja o maior amigo de um escritor. Gatos e escritores sempre viveram juntos em casas cheias de livros, com ou sem jardim, junto a uma máquina de escrever, agora substituída pelo computado ou no canto da hora mais solitária. Sentados junto a um monte de manuscritos e ao longo das suas (sete) vidas, os gatos foram os primeiros a conhecer as palavras dos seus donos. E também foram os únicos a ver todas as folhas de papel que acabaram amarrotadas no lixo. Muitas vezes, até brincaram com os rascunhos transformados em pequenos corpos disformes como se fossem ratos. Desde sempre, as palavras e os gatos andaram de mãos dadas. Não deve ser por acaso que a Assírio & Alvim tem uma magnífica colecção de poesia chamada Gato Maltês. E também uma original antologia de poesia contemporânea sobre gatos, “Assinar a pele” de seu nome. Se um gato é um poema, como diz Jean Burden nas primeiras páginas do livro, nesta antologia, são 57. Os seus donos são Charles Baudelaire, Fernando Pessoa, Lewis Caroll, Paul Verlaine, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke, Ezra Pound, Pablo Neruda, Alexandre O’Neill e Al Berto, entre muitos outros. Poetas e escritores que não resistiram a escrever sobre os seus amigos felinos, em várias línguas (português, alemão, francês, inglês e espanhol), todas elas, afinal, línguas de gato. Procuram vasculhar na sua alma e captar a sua essência, tentam interpretar as suas atitudes majestosas e ler o seu olhar sábio e imóvel. Com palavras que mais são festas e afagos feitos por uma mão melancólica, que sabe que um gato nunca lhe vai pertencer por inteiro. Os gatos, inesgotável tema literário, são o único personagem dos poemas e ainda bem que não sabem ler, pois senão ainda se tornavam mais orgulhosos e senhores do seu nariz. Descobriam, por exemplo, que têm a liberdade a que o poeta aspira. Fernando Pessoa inveja o gato. “És feliz porque és assim. Todo o nada que és é teu”. E quando abrimos o livro “Assinar a Pele”, os gatos saltam de um poema para o outro como de um telhado para um pátio soalheiro e espreguiçam-se num título. Esfregam os bigodes numa palavra e fogem de outra que se cruza no seu caminho. Cheiram um parágrafo com desconfiança e arranham as unhas numa ideia como se ela fosse um sofá. Têm medo de um ponto de exclamação, mas olham altivos para uma metáfora. Porque o gato é como a poesia. Passa por nós como uma sombra pelos olhos. Deve ser por isso que o gato é o maior amigo do poeta. Guillaume Appolinaire confessa que não pode viver sem “um gato passeando por entre os livros”. Porque o gato tem o dom da clarividência, mas respeita o silêncio. Está sempre a uma palavra de falar, mas nunca quebra o silêncio. Como escreve Charles Baudelaire “para dizer as maiores frases não necessita de palavras”. E como o poderia fazer? E. Guillevic lembra-nos que “o gato nada sabe do que vem nos dicionários”. E depois, há o olhar. Um olhar que é uma presença ausente e parece contemplar o vazio. Paul Eluard define-o com inspiração: “E quando pensa é até às fronteiras dos seus olhos”. Ainda sobre os olhos, Pablo Neruda escreve “seus olhos amarelos deixaram uma única ranhura para lançar as moedas da noite”. No poema “Como dar nome aos gatos”, T.S. Eliot explica-nos como esta questão é difícil. “Podeis pensar que sou doido varrido quando vos digo que um gato deve ter três diferentes nomes. Antes de mais nada há o nome que a família emprega diariamente (…) mas , digo-vos eu, um gato precisa de um nome que seja particular. (…) mais acima e mais além, falta ainda outro nome . E esse é o nome que jamais adivinhareis. O nome que nenhuma investigação humana pode descobrir mas o próprio gato sabe-o e nunca confessará.” A natureza dupla do gato faz dele um ser ambivalente. E à falta de melhor, antropomorfizamo-lo, emprestando-lhe um pouco de nós. Dos nossos defeitos, medos, paixões e manias. T. S. Eliot explica-se e explica-nos. “E agora a minha opinião é a de que não precisais de intérprete para compreender o seu carácter. Haveis compreendido o suficiente para verem que os gatos são muito parecidos connosco e comigo.” Talvez o gato resista a todas as definições, menos a uma tautologia. Pablo Neruda, na sua “Ode ao gato” escreveu: O gato quer ser somente gato e todo o gato é gato desde o bigode ao rabo.” Estes 57 poemas são como os gatos. Pequenos mas belos, reservados mas eloquentes. Tal como o silêncio, os gatos recusam-se a falar. E para capturar o seu mistério, o poeta usa armadilhas feitas com palavras e vírgulas, janelas decoradas com pontos de interrogação e travessões no lugar de trelas. Mesmo sabendo que quando quer, o gato consegue sempre fugir entre duas palavras. Deve ser por isso que nunca somos donos de um gato. Talvez seja ele o nosso dono. “Cúmplice de um medo ainda sem palavras, sem enredos, quem somos nós, teus donos ou teus servos?” ( Alexandre O’Neill). O livro termina com um texto de Pedro Paixão, no qual o escritor confessa que “gostava de ser como o gato (…) sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar.” E cento e onze páginas depois, o mistério do gato persiste. A este, junta-se um outro. Não me perguntem como, mas as minhas gatas parecem ter adivinhado que este texto (também) era sobre elas. Sentaram-se ao meu colo e até escreveram palavras e sinais incompreensíveis com a ajuda do teclado. Quem sabe se eram poemas. Nunca o saberei, porque esta língua de gato não sei ler.

texto originalmente editado no DNa