Two Lovers. Dois amantes ou dois amores (depende do olhar e da língua adoptada), um homem bipolar e quase duas horas de filme. Se multiplicarmos tudo isto por dois (confesso que em menos de uma semana vi o filme duas vezes), as dúvidas duplicam. Na certeza de que não há lugar para o terceiro que caminha ao lado deste casal, quaisquer que sejam os nomes que o compõem. Mas afinal, quem são os dois a que o título se refere? Serão as duas mulheres que ocupam, como vizinhas de andares diferentes, o coração bipolar de Leonard? Serão o par formado por Leonard e Sandra, a união comercial & social tão desejada por ambas as famílias tradicionais? Ou será o par improvável formado por um inseguro Leonard e uma Michelle que parece sempre irreal (como se fosse uma criação da mente do protagonista masculino, que alterna estados de depressão e euforia e tem na sua história marcas de suicídios falhados), uma mulher por vezes cintilante e feita de luz, outras desenhada com um cinzento fantasmagórico, mas irrompendo sempre na vida de Leonard como uma visão de origem incerta? Entre a tragédia e a comédia, as duas bipolaridades deste palco chamado vida, o amor justifica quase tudo, a começar por pensamentos insanos e gestos loucos. E Leonard / Joaquin Phoenix até parece ser um homem com sorte. Depois do regresso a casa dos pais para se curar de um desgosto de amor (foi abandonado pela noiva por incompatibilidades genéticas), recupera o espaço físico do seu quarto, mentalidade de adolescente incluída, e vê-se a mãos com aquilo que poderia ser um belo dilema. A sua bipolaridade é exteriormente reforçada pelas duas mulheres que, muito mais do que uma simplista versão da morena versus a loira, simbolizam efectivamente dois universos distintos. A morena, doce e compreensiva Sandra/ Vinessa Shaw representa o real quotidiano, a continuação de uma tradição familiar, o porto seguro de um amor que aparece como uma dádiva. A loira, enigmática e instável Michelle / Gwyneth Paltrow, recente vizinha tem uma escassa vida familiar dividida entre a visita de um pai louco, um cão que apenas se vê uma única vez e um amante rico manipulador e egoísta. Curiosamente, se não tivesse esta relação, o destino de Michelle nunca se teria cruzado com o de Leonard, pois o seu amante instalou-a neste apartamento por uma questão de conveniência, por ficar perto da casa da sua mãe e justificar as suas deslocações a este bairro. Já James Gray escolheu pela terceira vez Joaquin Phoenix por reconhecer no actor um reservatório de emoções. Leonard é o anti-herói, o homem apanhado na sua teia de contradições e traz cicatrizes escondidas que o nosso olhar não consegue tocar. Uma dança geométrica acompanha toda a sua instabilidade emocional, que obedece aos acasos do destino. Leonard tenta nadar à superfície do real como um suicida arrependido que é. O filme concentra uma colecção de detalhes e é sobretudo por pequenos pormenores que os personagens se vão revelando, inspirando no espectador ternura, compaixão e, quem sabe, reconhecimento. Sandra trabalha numa conhecida empresa da indústria farmacêutica (será ela o medicamento para a dor existencial de Leonard?); Michelle trabalha num escritório de advogados especialistas em divórcios, onde conheceu o homem casado com quem tem uma relação (e que apesar das promessas não se divorcia). E Leonard divide o seu tempo entre a lavandaria a seco dos pais, situada na Avenida Neptuno, e as fotografias a preto e branco que tira, sobretudo a paisagens e mais tarde a pessoas. Curiosamente, a água é um elemento presente de forma decisiva no início e no desenlace do filme. Na primeira cena, Leonard comete uma tentativa de suicídio cobardemente falhada, lançando-se da ponte sobre o rio. Quase no fim do filme, sozinho na noite de festa e com os pés procurando terra firme diante da imensidão do mar escuro, recebe das ondas, como uma segunda oportunidade, a caixa do anel de noivado lançada ao mar embrulhada num novo desgosto de amor. Entre a água que marca o início e o fim do filme, o universo de Leonard é o da limpeza a seco, uma provável metáfora para uma vida monótona e organizada e uma possível metáfora para uma vida seca de emoções profundas e verdadeiras (apesar de Leonard gritar, dizendo: Eu sei o que é o amor. Já estive para casar). Os indícios de uma tragédia latente despontam em pequenos fragmentos do quotidiano. As famílias são fontes de conflito e disfuncionalidades e a casa dos pais de Leonard oprime. Está decorada como um museu, tem recordações por toda a parte, as paredes repletas de quase sufocantes imagens e pedaços de memórias. Por contraponto, a casa de Michelle está praticamente vazia e na sua única visita à casa da família de Leonard, ela detecta o cheiro a naftalina. Michelle é a promessa de um admirável mundo novo. Desejamos no outro o que falta em nós? Será Michelle desejável por parecer inatingível? O amor será o reconhecimento do eu no outro? Será Sandra menos interessante por ter decidido ser submissa e as suas raízes e as de Leonard se tocarem? No entanto, esta não é a verdade toda. Sandra é uma mulher bela e sensual e Michelle mostra que, apesar de inacessível, é feita de carne e é a sua solidão e insegurança que atrai Leonard, tal como é a fragilidade de Leonard que atrai Sandra. Todos os personagens procuram o amor e tendem a pensar que basta um amar (ou pensar que ama) para o amor se realizar. A relação problemática de Leonard e da sofisticada Michelle revela-se no número 13 na carruagem do metro em que entram, num jogo sugerido por ele. Todos os actos têm as suas consequências, embora nem sempre as esperadas. Os gestos são desenhados na sua própria suspensão. De regresso a casa depois do hospital, Michelle pede a Leonard que lhe faça algo semelhante ao que a sua avó fazia para a adormecer: escrever-lhe no braço com os dedos. Leonard começa a escrever I love, mas não é obrigado a tomar uma decisão final, pois ela adormece antes que a declaração se complete. Afinal, o quê ou quem ama ele, que apenas escreve que ama? Cada personagem transporta um mundo de fraquezas, contradições, um dark side que as palavras não conseguem arrancar à sua escuridão solitária. É assim a tragédia humana, que desfila diante dos nossos olhos com pequenos apontamentos de quase comédia, sublinhados por uma banda sonora bela e triste, onde a ópera com Pavarotti e Puccini ou as imortais canções de amor e tristeza de Ella Fitzgerald e Tom Jobim reforçam o drama dos sentimentos. Pelo meio, ouve-se Amália num restaurante: Que estranha forma de vida / tem este meu coração / vive de forma perdida / quem lhe daria o condão? / Que estranha forma de vida / coração independente, / coração que não comando / vive perdido entre a gente / teimosamente sangrando.
O amor tem as suas raízes na dor. Cada novo amor nasce da impossibilidade do anterior. Sandra quer tomar conta de Leonard. Leonard diz a Michelle que quer tomar conta dela. Mas quem toma conta do amor? Quase no final, as ondas do mar devolvem a Leonard a caixa com o anel de noivado e uma das luvas oferecidas por Sandra. A luva, metáfora para a mão (uma mão artificial, sem carne e que por isso não sente, uma mão suplente), permite que ele repita o mesmo gesto e dê o anel de noivado pela segunda vez. Na última cena, há um casal que se abraça. Ele chama-se Leonard, ela tem o apelido Cohen. Juntos, dariam um Leonard Cohen com dois corações desafinados. O que acontecerá quando o abraço imóvel, dissonante e indiferente aos movimentos festivos à sua volta, parar? Serão eles capazes de dançar até ao fim do amor? Viver feliz para sempre pode ser uma das ratoeiras do amor. Talvez seja a sua maior tragédia.