Tem mais de 80 anos e ao primeiro e desatento olhar até podia parecer uma velhota roliça e tagarela a contar a sua vida, de olhos postos na câmara. Mas a sequência inicial deste filme documentário é de tal forma bela e inusitada, que prende de imediato o olhar: uma colecção de espelhos de vários formatos e molduras encontram-se dispostos à beira-mar. E se as paisagens nos habitassem como pessoas? pergunta a realizadora. Se abríssemos as pessoas, talvez encontrássemos paisagens, sugere. Talvez as paisagens sejam pessoas fixas, ou melhor, talvez as pessoas sejam paisagens nómadas, ambulantes. Trazemos ambas connosco. No caso de Agnès Varda são as praias e as cidades, dois continentes e uma família, os seus filhos e netos, Jacques Demy e Jean Vilar, figuras anónimas e gente famosa que fotografou e conheceu. Mas voltemos às praias dela. Praias que se vêem-se ao espelho, como se fossem pessoas. Paisagens em que Varda anda de marcha-atrás, em busca do fio condutor da sua história, para nos convidar a mergulhar na sua rêverie vivida. Virar-se para o passado é virar-se para dentro e percorrer as paisagens em rewind, porque as paisagens pedem uma viagem interior. Até ao princípio. Agnès, que nasceu Arlette em Bruxelas e aos 18 anos mudou de nome na conservatória do registo civil, era a filha do meio, segundo este raciocínio: a mais nova dos 3 filhos mais velhos e a mais velha dos 3 filhos mais novos. Foi uma criança quase esquelética, filha de um grego e de uma francesa, e viveu durante a infância num barco onde ela os seus irmãos andavam o dia inteiro de bóias, pois caiam frequentemente ao mar. Nesse cais de Sète filmou o seu primeiro filme, onde vemos um muito jovem Philippe Noiret a desfilar com uma bonita mulher a preto e branco no cais, onde duas narrativas se cruzam: a vida de todos os dias dos pescadores e a história deste casal em decomposição. Uma das mais belas sequências é o regresso a Sète e a recolha de imagens e testemunhos dos actores que entraram no filme e que entretanto envelheceram tanto, que têm de explicar à câmara quem eram no filme rodado nos anos 50. Olham a câmara como olham o mar, símbolo do eterno recomeço e como todos os homens que olham o mar, são Ulisses. Em Bruxelas, Agnès Varda regressa à casa onde a sua família viveu, agora habitada por um coleccionador de comboios em miniatura. Em Paris, recorda a breve passagem pela Sorbonne, onde nem a paixão por Bachelard a fez ficar. Na escola de fotografia e na escola da vida, com uma Rolleiflex oferecida na mão, parte à descoberta da desfocagem nas fotos como resposta à tirania do olhar. Depressa se torna a fotógrafa oficial do Théatre National Populaire e depois, quase sem dar por isso, realizadora. Até aos 25 anos, confessa ter visto apenas meia dúzia de filmes, no entanto depressa se vê incluída com o seu companheiro Jacques Demy e Jean-Luc Godard no movimento da nouvelle vague, de que dá uma deliciosa definição: filmes baratuchos a preto e branco. Filma sem saber quem foi Visconti ou sem ter visto um qualquer clássico da história do cinema. O cinema dança à volta da fotografia, a ficção e o documentário alimentam-se um ao outro. A mudez da fotografia ganha voz com as palavras do cinema. A liberdade é o seu estilo, como um dia afirmou numa entrevista, e também por isso Agnès Varda não se deixa catalogar. Os vários rótulos, ainda hoje, competem entre si em busca de um lugar mais definitivo: fotógrafa, documentarista, cineasta, artista plástica. E nós ali, a assistir à realização da vida ou à vida da realizadora. Às suas recordações que voam como moscas desordenadas, como ela refere várias vezes. Ao seu espírito de eterna respigadora e ao gosto pelas peças antigas e com histórias: a fotografia de uma família imaginária encontrada na rua, um relógio sem ponteiros, uma máquina de costura muito antiga curiosamente chamada La Moderne. Junto das fotografias da sua exposição em 2007 em Avignon, toma consciência de que todos aqueles amigos estão mortos e lança rosas e begónias coloridas aos seus pés a preto e branco. Jacques Demy é o mais querido dos mortos, pois foi o mais querido dos vivos, seu marido e companheiro de percurso. Já no fim de mais de três décadas de vida em comum, reconstitui e devolve a infância (que não conheceu) ao marido já doente em Jacquot de Nantes, cujas imagens ficcionadas alterna com a matéria viva do seu corpo, onde os signos da morte se vão inscrevendo. As memórias também se fazem e refazem: escolhem-se. A memória é sempre um discurso do presente. E se o olhar e a história a formam, o coração deforma-a. Quase na despedida, vemos a realizadora numa cabana feita de centenas de tiras de película nas quais a luz toca nas imagens. Enquanto houver imagens, Agnès estará a tentar apanhar aquilo que vê, deseja e passa diante do seu olhar, com a sua sensibilidade criativa e o seu tocante discurso. É essa a história deste filme. A respigadora de imagens leva-nos à praia, à sua festa de aniversário. E quem mais no mundo recebia, como presente do 80º aniversário, 80 vassouras, 4 delas piaçabas, com um sorriso de criança no rosto enrugado?