Há algumas semanas (há uma piscadela de olhos atrás, comparada com a idade da imagem), um desconhecido ofereceu-me esta fotografia. Foi mesmo no coração do jardim do bairro. Segundo contou, tinha acabado de a encontrar umas ruas atrás, junto ao caixote do lixo da reciclagem, e apesar de nunca termos falado antes, pensou que ela me interessaria. Não se enganou. Agarrei nela com todo o cuidado que merecem as memórias que não conhecemos e coloquei-a numa estante, para a qual olho muito de vez em quando, em busca de uma resposta: aquilo que se vê melhor quando deixamos de olhar. A fotografia mostra um casal acabado de casar nos longínquos anos 50 e está assinada a branco no canto inferior direito por A. Miranda. O verso completa a informação: tratava-se de um estúdio de reportagens fotográficas e do cliché nº 638. Se a morte ainda não os tiver separado (duvido, e acho que é por este casamento já estar morto que veio parar, esvoaçante, a um ponto de reciclagem para renascer, quem sabe, em jornal desportivo ou folha de papel de um escritório de advogados que trata de um processo de divórcio), já terão festejado as bodas de ouro. Ele segura as luvas brancas na mão esquerda, simétrico do bouquet de flores brancas na mão direita dela. O chapéu preto junto às luvas brancas lembra o de um mágico. Um lenço espreita por cima do coração e do seu mapa impossível de dobrar no bolso. O vermelho das estradas e artérias depressa tingiria o branco do lenço que apagou uma lágrima de felicidade transparente dela. O longo véu da noiva já mulher tapa os pés do noivo agora marido e esconde também parte do tapete que indica o caminho, feito de passos de adeus. Uma calma suspensa, semelhante àquela que se sente antes de uma tragédia, invade a imagem. Devia ser domingo. Devia ser Verão. Deviam ser os anos 50. Deviam ser felizes. As fotografias são janelas abertas sobre a vida dos outros. Há sempre uma cortina esvoaçante que acompanha o movimento dialéctico da desocultação. Aqui, há também a cortina da entrada na igreja, que faz de pano de fundo. Uma cabeça esbatida espreita curiosa e tímida, talvez para descobrir o segredo de um casamento feliz, de costas. Este casal é um segredo visual com zonas de sombra, mesmo para eles próprios. A proximidade dá a ilusão do conhecimento, mas aumenta o efeito de desfocagem. Será que alguma vez se conheceram? Uma sensação não se pode dividir em dois, como uma maçã. Nem uma dor, ou um prazer se podem trocar ou tocar, de tão fechados sobre si próprios que são. Que somos. As palavras também não se podem dividir. Conversar é tomar conta do tempo e o casamento é um longo diálogo. Quando o espanto desaparece, os adjectivos tornam-se cansados, gastos. Em que data se terão sumido os adjectivos? No dia em que acreditaram que o casamento é um amor obrigatório? Gostariam de se ter conhecido mais cedo? Terão alguma vez, depois deste dia, sentido que o domingo não é um dia triste? E o sino, estaria a tocar para fazer de banda sonora do presente? São tantas as perguntas que estes dois seres, imóveis numa felicidade antecipada, me pedem para fazer. Mas como poderiam eles explicar o passado, que aqui ainda era futuro, a quem não pertence aqui? Alguém os esqueceu completamente. O silêncio nunca se pode devolver. Resta-nos perguntar-lhe se pode aumentar o volume.