domingo, 19 de julho de 2009

Dicionário não-etimológico: "heroína"

heroína = herói menina. O herói em versão menina tem um nome: Alice. Alice não é uma menina, é a menina que todas as meninas gostariam de ser, se não o fossem. Curiosa porque criança, bem humorada porque infantil, educada porque menina, emotiva porque mulher, inteligente por tudo isto e porque sim. A revolucionária Alice nasceu em 1862, depois de ter pedido para ser inventada e assim corresponder ao arquétipo de personagem eterna: o herói menina. Apesar de mudar de tamanho, é criança toda a vida, o tempo inteiro, há quase 150 anos, ao longo de milhares de infâncias (e não só) que lhe dão vida sempre que a lêem em mais de 50 línguas. As suas aventuras não são uma história que adormeça crianças, o mais provável é despertar adultos. A primeira heroína infantil vive no território fértil da imaginação, onde a inocência e a perversidade são vizinhas. A sua infância inventada é o espaço possível da liberdade e Alice comete uma série de infracções. Sai sozinha à aventura, não sabe para onde vai, desconhece os seres com quem fala, obedece às ordens de etiquetas e letreiros inusitados e acredita em quase tudo o que vê. Procura a sua identidade na linguagem e percorre um iniciático país das maravilhas. Tem a experiência do desumano, ficando minúscula ou crescendo desmesuradamente. Passeia por um jardim de contradições e paradoxos, à imagem do mundo. O absurdo é a expressão acabada da inocência. Nonsense lembra foneticamente innocence. E a sua inocência é um hino ao que sente e pensa. Perdida entre dois universos insólitos, a heroína vence os adultos, tal como o país das maravilhas subjuga o real. Os seus diálogos com animais dotados de capacidades antropomórficas vêm na velha tradição das fábulas e representam a tomada de consciência da complexidade de todas as coisas. Alice não é uma mera espectadora, é constantemente confrontada com a acção e participa em jogos de linguagem numa atmosfera absurda habitada por criaturas extravagantes. A eterna criança corre para o inesperado e promove encontros com humor, contestação, muitos pontos de interrogação e outros tantos sorrisos enigmáticos. Alice fala com um gato, coelho, lebre, tartaruga, lagarta, flamingo e todas estas criaturas têm a sua lógica e dão respostas. Se a conversa é um jogo, é bom saber as suas regras. Só assim se podem entender opiniões sem sentido e manter conversas aparentemente disparatadas. Num constante exercício de inversão da lógica, Alice passa do puro divertimento ao quase terror. Por detrás de uma palavra espreita um perigo e a tensão está sempre presente entre um universo de sonho e a pesada realidade. Simultaneamente lógica e sentimental e surpreendentemente real, a sua curiosidade louca vai abrir a pequena porta da grande aventura. A criança que quer crescer, sem saber que quando for adulta desejará voltar de novo à infância, sofre as metamorfoses do corpo. Alice cresce muito, mas permanece criança. Como heroína que é supera um cem número de problemas nessa dimensão épica do quotidiano que é a fantasia. Não se encontra, como o herói clássico, entre os deuses e os homens, mas entre os adultos e as crianças, entre o real e o imaginário. Talvez Alice tenha permanecido um enigma para o próprio autor, como as crianças permanecerão sempre um mistério para os adultos, os seus primeiros heróis. Mas de que serviria um livro de aventuras para crianças de todas as idades sem Alice? Há obras que não precisam de uma vida para existir. A heroína é aquela que finge acreditar nisso. Quem mais teria esse poder? Alice mora aqui, no país das maravilhas onde gostamos de regressar, imaginando-nos heroínas por umas breves páginas.