In almost every picture # 1
São 12 anos de registos fotográficos de um marido, que tem como modelo exclusivo a sua mulher. A primeira é de Junho de 1956, sentada numa pequena rocha no mar e a última fotografia do livro é de Dezembro de 1969, no largo de uma igreja em Alcala Henares (um prenúncio da morte?). Ao longo de dezenas de fotografias, viajamos no tempo e no espaço com esta mulher e assistimos ao seu envelhecimento. Vamos sabendo as datas das fotografias e o local: praia, campo, neve, cidade. Desfila nas quatro estações do ano, assistimos à evolução da moda e dos penteados, à alteração do corpo, com a passagem dos anos e às oscilações de peso. Testemunhamos os azuis do mar, os barcos, os lagos, os jardins com flores, as estátuas, a aliança sempre no anelar esquerdo, as igrejas, o Renault 4, o piquenique com batatas fritas e a lata de cerveja Amstel, o letreiro luminoso da Coca-Cola, a mesa do chá. Faz uma informal passagem de modelos e em fato de banho, na praia, ou na cidade, com tailleurs, luvas, colares, chapéus, malas de mão, ela está sempre bem vestida. "Após vermos algumas fotografias, podemos reconhecer o estilo do fotógrafo. Primeiro, ele faz uma composição cuidadosa, depois tira as fotografias, revela-as e escreve a data e o local no verso da fotografia, antes de a juntar à colecção". A colecção foi encontrada e comprada por Eric Kessels na feira da ladra de Barcelona. Neste livro, entramos dentro das fotografias e tentamos descobrir o que está escondido nelas. A aparente banalidade esconde intimidade, uma intimidade inacessível e misteriosa. Uma leitura atenta das legendas das fotografias revela alguns hábitos: férias grandes, sempre em Julho, em diferentes praias (Tamarin, La Fosca, Cap Roig), idas a Andorra, à neve, entre Janeiro e Abril. Em diversos Outonos, há visitas a Barcelona. Nos dias mais quentes, é o sol que lhe ilumina o sorriso. E depois, há imagens que apenas surgem uma vez. A rosa na boca, no campo de trigo, de onde vem? Não deve ter tido filhos e só aparece uma vez com uma criança. Apenas a fotografia da mesa com o serviço de chá se passa no interior de um espaço. Numa, há um cão e em muito poucas, a mulher surge acompanhada por uma amiga. Entre as mais de 500 fotografias, onde se esconde o "eu"? Terá ela sido feliz? Onde regressavam sempre? Como era a sua casa? De que falariam? Qual seria a profissão dele? Estas são as suas recordações de férias e de viagens, dos momentos em que saíam da rotina quotidiana. E no entanto, adivinha-se a descoberta, no hábito, do amor mais duradouro. O olhar dela diz que só tem olhos para ele, nestes registos fotográficos em que ele só tinha olhos para ela. A verdade sobre o marido não estará nos olhos dela? Os olhos dela olham para ele em quase todas as fotografias. Será que ele lhe dizia:"chega-te um pouco mais para a esquerda. Compõe o cabelo. Sorri um pouco mais. Assim estás mesmo bem bem"? Eles foram assim. As fotografias são clichés do que eles parecem ter sido. A colecção é única porque não foi planeada e permite-nos espreitar as memórias privadas do casal. As últimas palavras do livro, no verso da contra-capa, prometem a devolução das fotografias, caso apareça algum familiar do fotógrafo ou do sujeito fotografado. Porque é que as fotografias terminam em 1969? Eles já terão morrido? Uma galeria de Barcelona exibiu-as e foi colocado um poster a pedir informações sobre a mulher fotografada. Uma colega de escola reconheceu-a e foi assim que se ficou a saber o nome dela: Josefina Iglésias, já desaparecida da vida, mas eternizada nas fotografias do marido e neste livro singular. Resta perguntar: quem teve coragem de pôr à venda toda esta intimidade, numa feira? Felizmente, as fotografias vieram parar às mãos certas e, por isso, tocaram o nosso olhar.
Texto publicado na revista Alice, no Verão de 2005