"Coleccionar fotografias é coleccionar o mundo".
Susan Sontag, "Ensaios sobre Fotografia"
Nunca se sabe quando vai aparecer a próxima colecção de fotografias e este é, seguramente, um dos seus maiores encantos. In almost every Picture são dois livros da agência de publicidade holandesa Kesselskramer, editados e com design gráfico de Erik Kessels. Neles, há apenas um único texto, escrito pelo copywriter Tyler Wisnand que, na última página dos livros, ajuda a decifrar um pouco das histórias. Publicados pela Artimo Amsterdam, ambos mostram viagens de dois seres a caminho de algum lugar. Duas mulheres foram captadas pela câmara fotográfica de dois homens, num conjunto de registos que têm uma evolução espácio-temporal através de datas ou quilómetros. Um casal é sempre singular e único e o mundo nunca o entenderá a ponto de saber falar sobre ele. Nestas duas histórias de amor por contar, feitas de gestos quase casuais, a banalidade e a singularidade misturam-se. Será intimidade ou hábito? Vontade ou imposição? Generosidade ou egoísmo? Presença ou ausência? As imagens são sempre fragmentárias e incompletas e as fotografias, as suas revelações. Estas imagens sequenciais são evidências de uma realidade já passada. O seu tom ligeiramente amarelado e os pontos pretos provocados pela humidade dizem-nos que as fotografias também envelhecem, tal como as pessoas e como o papel que lhe serve de suporte. Atacadas pela luz, gastam-se e empalidecem e muitas vezes delas se perdem os negativos que possibilitariam a sua reprodução. Como se isto não bastasse, as fotografias são já por definição objectos frágeis que se tornam valiosos pela tentativa de reprodução do irrepetível. Cada história pessoal é feita de partículas e fragmentos. O número de fotografias que se podem tirar é inumerável. Porquê fotografar assim e não de outro modo? As fotografias dos dois livros são ingénuas, mas não descontraídas ou acidentais. A pose, pensamento de um instante, diz sobre a forma como querem ser vistos para a posteridade. Estas imagens são pessoais e intransmissíveis, daí que cada fotografia mostre apenas uma personagem, numa solidão habitada e compartilhada. Se nos aproximarmos um pouco mais, quase ouvimos o bater do seu coração. As fotografias têm esta particularidade: fazem inventar histórias. E estas fotografias pensativas, que mostram o que escondem, colocam imensas questões. Somos tentados a reconstituir as histórias destes sujeitos temporariamente transformados em objectos e destes corpos traduzidos em imagem. A historicidade da imagem pede que as fotografias sejam inscritas numa ordem de continuidade, num plano sequencial. Há uma certeza - o presente - e uma dúvida - o futuro, que entretanto já se tornou passado. Mas nem por isso todas as respostas estão dadas. Pegamos nestes objectos melancólicos que são os dois livros e temos a esperança de descobrir a verdade (mas que verdade?) sobre estas histórias. A sequência em que as fotografias devem ser olhadas é proposta pela ordem das páginas, ou talvez não. Nada obriga o leitor a obedecer-lhe. Estas imagens portáteis, que se tornam uma espécie de ritual, mostram apenas parte do que eles foram. Há muitas coisas que não cabem nas fotografias e por isso, ficam sempre de fora: os cheiros, os sons, o cenário que não se vê, as vozes que não se ouvem e os sonhos que não se deixam apanhar. As fotografias são provas de que algo aconteceu e paradoxalmente, são a sua negação, ao transformar esse acontecimento numa recordação. “Inventário da mortalidade", como lhes chamou Susan Sontag, há algo de fantasmagórico nestas fotografias, a que corresponde uma ilusão de participação do leitor. Os dois fotógrafos são coleccionadores deste "potencial objecto de fascinação", movidos por uma paixão do presente. Por que motivo decidiram os fotógrafos que estas eram as imagens que deviam ser fotografadas? Depois de contempladas e imaginadas todas as fotografias, será que alguém sabe responder a esta pergunta? Nesta busca de magia no real, em quase todas as fotografias, eles fotografavam as viagens ou viajavam para fotografar?
texto publicado na revista Alice, no Verão de 2005