sólidas = só lidas. Desconfiemos de tudo o que não fica escrito, diz o mundo sem o escrever. Há palavras, frases, verdades, declarações, teorias, histórias, perguntas, confissões e vidas que só lidas. Contadas, ninguém acredita. Podiam facilmente confundir-se com o seu próprio fantasma. E onde se guardariam as palavras que não são escritas e por isso não são lidas ou sólidas? No bolso das calças de ganga, dentro do livro preferido, numa caixa de madeira com uma pequena chave ou na curva mais secreta do ouvido? Se ler também é ver, queremos ler para crer. Ler a Bíblia numa página aberta ao acaso, juntar todos os pedaços de uma longa conversa telefónica numa noite sem sono, colar os fragmentos de um discurso adjectivável de amoroso ou apanhar para sempre uma história com cabelos brancos numa folha branca que deixa de o ser. Como se as outras palavras, as etéreas, ditas, insinuadas e até caladas, não contassem. Nem as ditas ao ouvido com os decibéis de um segredo ou as gritadas a alto e bom som numa avenida movimentada. Como se a memória desconfiasse de tudo e de todos, até mesmo de si própria. Pede-se à palavra que seja única, mas que deixe uma testemunha visível, palpável, com corpo, peso e medida. Gostava de tocar nas palavras que acabei de ouvir, como se elas fossem uma escultura de pedra. Se não estão aqui à frente dos meus olhos, podem estar em qualquer outro lugar. Só lidas me inspiram confiança: posso lê-las incontáveis vezes (até acreditar nelas) e até exibi-las como prova ao mundo. A quem se atrever a duvidar daquilo que digo. Parece que o papel lhes dá valor, solenidade e poder. Há mesmo quem pense: se foi escrito é porque é verdade. Quem se atreveria a escrever uma mentira? Os livros prometem solidez, apesar das bibliotecas se incendiarem. As palavras escritas seguem a seta da eternidade, esquecendo-se que são seres datados. As dedicatórias na terceira página dos livros mentem sem saber porquê. Os documentos garantem factos que estão permanentemente a ser reescritos. As palavras sólidas lembram um contrato em que apenas uma parte assina. Escreve, que eu não assino. Basta-me a tua palavra mais sólida. A palavra escrita impede as palavras de serem empurradas pelo vento, pensamos. Esquecidos de que elas nunca chegam e muitas vezes até já partiram para outro lugar. Contemplamos as suas sólidas ruínas com a mesma devoção com que olhamos as estrelas mortas que brilham no céu. Por vezes, lamentamos que algumas palavras não possam ser colocadas no congelador, para durarem mais e um dia termos a última palavra. Talvez as cartas tenham sido inventadas por um coração que descobriu a falta de solidez de algumas palavras. Mas isto não serve apenas para elas. Também só lidos acreditamos em certos silêncios. Se as palavras falassem em seu nome, e não através do nosso, talvez dissessem que gostariam de ser de vidro transparente. Sólidas para quem acredita no que não lê.