A Rainha não sabe, mas o coração não é só de copas: também é de espadas, ouros e paus. A Rainha de Copas não acredita, mas o coração não é de papel que se rasga, antes de pele que se tinge, de carne que se magoa, de artérias que se cruzam num caminho certamente vermelho. A Rainha de Copas nem sequer imagina o tamanho do coração. Um punho fechado com cerca de 270 gramas de tridimensionalidade. Nunca experimentou desmontá-lo como se desmonta um relógio (o coração mecânico que imita o humano, como todas as máquinas imitam sempre a natureza), nem sentiu as cicatrizes que nenhum cardiologista consegue ver, a fecharem devagar. Jamais vai compreender o dilema do coração: ser uma casa que não gosta de permanecer desabitada e por isso procura de forma generosamente interesseira a simétrica metade, ou viver assombrado pelo fantasma do amor dos romances felizes, idealmente felizes. A Rainha de Copas não faz ideia de quantas pessoas cabem num coração humano; ela apenas sabe quantas cartas cabem no seu naipe. Desconhece a importância daquilo que cerca o coração e como é diferente ser um bosque medieval, um país das maravilhas, um novelo desenrolado de arame farpado ou uma mesa de jogo forrada de feltro verde. Nunca pensou: o coração é um símbolo musculado. Nunca sentiu: o coração é um órgão sentimental. Nem sequer se lembrou de perguntar: por que motivo o coração não tem a forma de um coração? Quando se emociona (e isso acontece a toda a hora), o seu coração sobe à boca e recorta os lábios de papel cor de carmim. A Rainha de Copas desconhece o direito do coração ao erro. Pensa mandar em todos os corações, embora acredite ser a dona do único coração do mundo. Alguém pode fazer-lhe esta pergunta, mesmo sabendo da sua incapacidade de lhe responder? Por que motivo o amor não tem graus, como os homicídios? E por que não tem degraus e andares, como uma casa? Um amor em segundo grau deve ser diferente de um amor sotão, não acham? Tal como um amor cave não deve confundir-se com um amor involuntário, como se o coração tivesse vontade própria, pois não?