sexta-feira, 24 de abril de 2009

Clarice mora aqui


A casa do poeta tem uma visita feminina que ocupou uma sala inteira com fotografias suas nas paredes. E como se isso não bastasse, ainda espalhou a sua mala pelo chão, uma mala com tamanho suficiente para albergar escovas de cabelo, pensamentos introspectivos (como se não o devessem ser, todos), maços de cigarro, fragmentos de discurso, canetas, palavras luminosas com zonas de sombra, porta-moedas, espantos e mistérios, lenços, fotografias queimadas pela verdade do tempo, blocos e até um livro de formato A4, de capa cor de laranja e com um título irresistível: “Só para Mulheres”. A autora desse livro é o rosto das fotografias da parede: a mulher que entrou pela casa do poeta sem bater à porta, como se soubesse a senha para a abrir. Talvez a senha fosse “a hora da estrela” ou “perto do coração selvagem”. Felizmente, os nossos passos não precisam de dizer palavras para entrar. E basta as nossas mãos esticarem-se um pouco para segurarmos a vida de Clarice Lispector nas mãos, vida pesada de 668 páginas com centenas de fotografias e textos que exaltam o mistério da sua vida. As biografias têm essa particularidade de tudo quererem ordenar, de forma lógica e cronológica, como se uma vida se explicasse à luz da morte e todos os passos dados justificassem a chegada ao fim. Fazem profecias ao contrário, procuram descobrir as causas nos efeitos, fazem rewind, por vezes pause, tentam saber sempre mais sobre a pessoa transformada em personagem, como se tudo pudesse ter sido diferente. E podia? A capa mostra uma fotografia da escritora que não se reconhece ao primeiro olhar. Um rosto envelhecido, queimado pelo sol brasileiro (é verdade, o sol tem nacionalidade), com marcas da vida, a preto e branco, iluminado num fundo escuro a pedir que o arranquemos de toda aquela escuridão, onde até o batôn é preto. Por mais que olhemos para ela, sabemos que nos vai ganhar no jogo do olhar, pois os seus olhos fixaram-se naquele que está do lado de cá da fotografia e estão imóveis, pelo que os nossos serão os primeiros a desistir, também porque há uma certa ânsia em entrar no mundo de Clarice. Com tanta curiosidade como pudor, combinação irresistível, entramos na vida que foi escrita à margem dos livros, no livro da sua vida. A infância, os pais, os irmãos, o bilhete de identidade, postais e cartas, a obra, as capas dos livros, o Rio de Janeiro, os amores, os filhos as viagens, recortes de jornais, a escritora no seu ofício, e por fim, a morte. Dezenas e dezenas de fotografias que mostram este olhar penetrantemente belo e atento de alguém que vê o invisível e o quer devolver ao mundo em palavras impalpáveis - o eco da pergunta a que os deuses não respondem. Um olhar do qual imaginamos escorrerem lágrimas feitas de cinzas dos cigarros que segurava na mão. Excepção para duas fotografias: uma, onde tem as duas mãos a cobrir o rosto e esta, tirada em Nápoles, em 1944, num quarto de frente para o mar, onde Clarice está de olhos fechados, quem sabe para melhor ver o azul do Mediterrâneo ou agarrar as primeiras palavras de um dos seus contos. Então, vem à memória a vontade de tocar no livro laranja caído no chão e após um pedido de autorização para desarranjar por breves instantes a instalação, partir à descoberta dos conselhos, segredos e receitas da escritora que assinou com pseudónimos artigos nos jornais brasileiros e onde ensina como pintar os olhos ou evitar os quilos a mais e fala da importância da leitura ou da cidade que se descobre de madrugada. Devolvido ao seu lugar o livro onde a escritora parece mais irreal do que na sua fotobiografia, pedimos para levar uma vida de Clarice connosco. E imaginamos, à saída, que na noite branca, quando só os fantasmas que saltam dos livros habitam a casa, Fernando e Clarice poderão ler textos em voz alta e quem sabe Clarice vai comer chocolates, porque não há mais metafísica no mundo, enquanto lembra a quem não a consegue ouvir: “Não lamentem os mortos. Eles sabem o que fazem”.