Parecia um cenário de um filme. Um dinossauro de metal com o número 944 no dorso trincou, em duas frias manhãs de Fevereiro, de forma mecanicamente selvagem as paredes do cinema Europa. Foi levando nas suas ferozes mandíbulas, além das dentadas de cimento e pedra, invisíveis pedaços de película em Technicolor, palavras brancas caídas das legendas dos filmes, risos abafados, matinés de domingo, declarações de amor, lágrimas disfarçadas, noites de sábado, bilhetes de plateia amarelecidos pelo tempo, cartazes com deusas de carne e osso ou solitários cow-boys, beijos a preto e branco, perseguições de automóveis a cores, o bigode de Charlot, os olhos de Gene Tierney, a voz de Lawrence Olivier, as personagens de Bergman e três letras repetidas incansavelmente no fim de cada sessão. Campo de Ourique tinha o seu cinema Paraíso (embora lhe tivesse dado outro nome). Agora, tem um buraco na sua memória, que nenhum condomínio privado com apartamentos de luxo, piscina (e eventualmente um centro cultural) poderá preencher.