Há alguns anos, a editora italiana Mondadori colocou os seus livros ao alcance da mão, dos olhos e da imaginação do leitor. Com um desconto de 30%, milhares de livros de qualidade indiscutível foram vendidos a um preço inimaginável. Com um pequeno pormenor: na campanha publicitária, o desconto foi aplicado ao título da capa, através da redução dos números que fazem parte do nome das obras. Feitos os descontos, estes clássicos transformaram-se, mas mantiveram todas as suas palavras.
Abcdefghijklmnopqrstuvwxyz. As 23 letras do alfabeto, combinadas entre si, produzem os mais variados efeitos. Fazem pensar, rir, chorar, sonhar, odiar, desejar, ter medo, compreender. Nas mãos de Lewis Carroll, tornaram-se “Alice no País das Maravilhas”. A partir da mente fantasiosa de Alexandre Dumas, deram corpo a “Os Três Mosqueteiros”. O pensamento original de George Orwell transformou-as no “1984”. A solidão da escrita e muita inspiração fizeram delas “Cem Anos de Solidão”, nas mãos de Gabriel Garcia Marquez. Oscar Wilde misturou-as de forma a criar “O Retrato de Dorian Gray”. Através delas, ficámos a conhecer seres flutuantes como Alice, Romeu e Julieta, Gulliver, Ema Bovary, Meursault, Tom Sawyer, Gatsby e Joseph K. , numa galeria infinita de personagens, com as quais o leitor se mistura. Passeia entre as frases, como num bosque e descobre sentidos. O livro é uma máquina de imaginar e não tem substituto no nosso imaginário. Leva-nos a lugares que nunca visitámos, apresenta-nos pessoas que nunca conhecemos, empresta-nos sensações e sentimentos que não eram nossos. No prazer solitário da leitura, ouve-se a voz dos autores e vêem-se as personagens, que saltam das folhas para a cabeça do leitor, num estranho bailado. Italo Calvino escreveu um dia que “os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: “Estou a reler” e nunca, “Estou a ler.” Os clássicos são os livros que “persistem como ruído de fundo mesmo onde domina a actualidade mais incompatível”. Nunca dizem completamente o que querem dizer, daí que convidem a novas leituras. A engenhosa escolha recaiu sobre três títulos com números: um, de unidades, outro na casa das centenas e um da ordem do milhar. Três livros de áreas distintas da literatura, como a aventura, a ficção científica e o romance, escritos por um autor francês, um inglês e um colombiano. Qualquer pessoa com o mínimo de cultura geral reconhece a alteração inesperada e não desprovida de humor dos títulos originais destas três obras de referência da literatura mundial. Os números comandam a campanha, como aliás tantas coisas na vida. O desconto aplica-se tanto ao preço do livro como ao título da capa, através da redução de 30% nos números que fazem parte dos títulos das obras. Assim, “Cem anos de Solidão” ficam reduzidos a “Setenta Anos de Solidão”. “Os Três Mosqueteiros” cedem à lógica implacável da matemática e transformam-se em “ Os 2,1 Mosqueteiros”. O que será que ficou do 3º mosqueteiro? Um braço, duas mãos, os pulmões? O famoso “1984” de George Orwell passa a referir-se a outra data. Deixa de ser futurista, visto que foi escrito em 1948 e era, então, um livro sobre o que ainda não tinha acontecido e é remetido para “1388,8”, em plena Idade Média. De vanguardista aterra na idade das trevas, na viagem pela máquina de calcular e pela máquina do tempo. Uma vírgula separa a data em anos da casa decimal, que é ocupada por um oito. Será um oito de Agosto, o oitavo mês do ano?
Nestes subversivos (mas ao mesmo tempo lógicos) actos de nomeação, os livros perdem valor numérico nos títulos, mas mantém todo o seu valor literário. Têm todas as personagens, folhas, palavras e os espaços em branco entre elas que fizeram deles clássicos da literatura. E se estes livros estimulam a imaginação, a campanha publicitária da Saatchi & Saatchi Milan, apesar da sua simplicidade, também nos deixa à procura de outros títulos aos quais aplicar o desconto. “A Volta ao Mundo em 80 dias”, “Fahrenheit 451”, “As Mil e Uma Noites”, “Branca de Neve e os Sete Anões” e “Seis Personagens à procura de um Autor” foram os primeiros a surgir, mas há decerto muitos mais. Depois, é pegar na caneta (ou na máquina de calcular) e descobrir como se passariam a chamar estes clássicos. Os tais livros que ganham sempre algo de cada vez que são tocados com o olhar, mesmo que percam no preço. Na certeza de que, depois de abertos, nunca mais se voltam a fechar, pelo menos na nossa imaginação.