sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O fantasma do amor

O mal-estar está presente desde o início do filme e a tragédia anuncia-se na sua fotografia a preto e branco e no solitário violino que geme como uma voz humana, soando às cordas de um coração despedaçado. Filmado com a estética da nouvelle vague e a preto e branco, como os fantasmas gostam, La Frontière de L’Aube mostra-nos personagens inquietantes. Durante todo o filme, parece haver sempre uma janela aberta que provoca uma corrente de ar e dá arrepios. Carole (Laura Smet) é uma promissora estrela de cinema, bela e jovem, que vive sozinha. François (Louis Garrel, filho do realizador do filme, Philippe Garrel) é fotógrafo e vai a sua casa para a fotografar. No primeiro encontro, Carole veste de branco e ele já está a fotografar um fantasma, sem o saber. Armazena fotografias dela, tenta despi-la com a câmara fotográfica, rasgar a pele impenetrável do seu mistério. Tornam-se amantes e desde logo Carole revela-se uma mulher perturbada, dedicando a François um amor louco. Nesta história todos parecem estar a mais: os amigos de Carole, o seu marido que a deixou para ir trabalhar em Hollywood e, mais tarde, a nova namorada de François, intrometendo-se na intimidade do par de amantes. A simplicidade minimal dos décors e do guarda-roupa requintado, mas também a enorme economia narrativa e discursiva - os personagens falam pouco - dizem o essencial. Carole transporta um frágil mistério: o seu corpo é jovem e belo, porém a alma está velha e doente. O amor transformou-se numa doença incurável. Enquanto compõe coreografias do desespero com a solidão do seu corpo, o seu rosto feito de sombras e luz vai formulando perguntas ao seu amante: E se estivesse doente, ainda me amarias? Se perdesse o cabelo, os dentes, se enlouquecesse? - ou fazendo afirmações lúcidas, só possíveis nos intervalos de aguda consciência que a loucura dá: As separações deviam ser tão belas como os encontros. Se nem tu confias em mim, estou sozinha no mundo. Desde o início, assistimos à morte de um amor em que os protagonistas, cada um a seu tempo, convergem para um buraco negro - este amor está condenado à morte de cada vez que se tenta realizar. Obedecendo ao ritmo irreversível da tragédia anunciada, ela fica cada vez mais transtornada, lança fogo à sua casa, é internada numa clínica e acaba por se suicidar. Mas a história não acaba aqui, não termina no até que a morte os separe. Ela volta do reino dos mortos para assombrar François, que entretanto se apaixonou por outra mulher (que se chama Eva, o nome da primeira mulher da humanidade) e vai ser pai, embora não conheça mais do que uma felicidade atormentada. Sente-se culpado por ter abandonado Carole e de alguma forma responsável pelo seu suicídio. Carole quer convencê-lo a ir ter com ela. Conhece o caminho para o seu coração e sabe como ele se sente culpado por ainda estar vivo. Como uma fotografia que vai ganhando nitidez, começa a aparecer-lhe do outro lado do espelho. Chama por ele: És o meu amor ferido. Invoca-me e eu aparecerei. Escondi-me nos teus sonhos. Não me podes esquecer. As suas aparições lembram inesperadas fotografias reveladas, como se o fotógrafo da história as tivesse tirado sem saber, talvez de olhos fechados, a dormir, ou de olhos abertos, a sonhar. O amor louco é uma doença contagiosa, um vírus que acaba por contaminar François. Sempre amou Carole como uma imagem: primeiro, enquanto ser fotografado, depois, enquanto fantasma. De cada vez que vê Carole, François ressuscita-a, mas não lhe pode dar vida. O amor louco aparece com a sua luz crepuscular na fronteira do amanhecer, deixando-o num estado de sonâmbula loucura. Ele não tem apenas de escolher entre duas mulheres. Tem de escolher entre uma viva e uma morta, entre continuar ele próprio vivo ou morrer. Eva não consegue ser a última mulher. François prefere o fantasma de Carole. Se o cinema é a capacidade de ver a ilusão, a visão de Carole é tão nítida que quase lhe pode tocar, já despida de sombra. No espelho, o amor e a morte encontram-se como um único ser: ambos têm a ilusão de destruir a distância. Os mortos sabem mais do que nós e por isso é impossível vencê-los. O fantasma do amor precisa de uma morada para onde voltar.