O espelho responde sem pensar. Dá a resposta antes de ouvir a pergunta. Como se alguém lhe tivesse dito, muito baixinho a resposta, pedindo para ele inventar uma pergunta. Só então. Depois, para disfarçar, enquanto tentamos descobrir onde se escondem os seus olhos (como se estes fossem a maçaneta para abrir a sua porta), finge que é obediente. E nós acreditamos que somos o ser dentro do espelho, como se tivessemos entrado lá para dentro, através do seu olhar. Piscamos o olho esquerdo e a nossa imagem diz-nos que estamos a piscar o olho direito. Acenamos-lhe com a mão esquerda e é a mão direita que responde. Vemos o relógio no pulso contrário e de repente sentimos que nem a nossa imagem nos pertence. Tinhamo-nos esquecido outra vez que o espelho mente, porque mostra a resposta ao contrário. E o contrário da verdade pode ser uma mentira bem contada, ou, neste caso, mostrada. O espelho não consegue devolver o real. Num mundo sem espelhos, dependeriamos do outro para nos dizer como (a)parecemos. No mundo dos espelhos, eles dependem de luz para nos mostrarem. Os olhos dos espelhos não vêem no escuro e nunca pensam na luz. O espelho é desumano porque nunca deixa de ser neutro. Embora fale sempre na nossa primeira pessoa, ao mostrar-nos a segunda, o espelho nunca poderia ter o nosso nome. É uma imagem provisória e, ainda por cima, tem a pele fria. Sonho com o dia em que o espelho me imite realmente. Ou então, com o dia em que me pare de imitar de vez e se ria quando estou triste, ou penteie o cabelo enquanto lavo os dentes. Sonho com o dia em que o espelho ganhe vida, nem que para isso a imagem que ele faz de mim desapareça.