sábado, 21 de março de 2009

Tapetes de espanto

"O meu tapete de espanto num tear de nostalgia".

José Carlos Ary dos Santos, "Obra Poética"

Esta semana, estenderam um tapete de espantos no Jardim da Parada. Esse tapete não se vê (e por isso não se pisa) no chão, esconde-se antes dentro de duas indiscretas tendas brancas e tece-se com as vozes dos poetas e dos livros que as habitam. E porque não se vê, é fácil tropeçar nele e cair em tentação. Suprema tentação. As tendas que acolhem esta Feira da Poesia ondulam muito suavemente ao vento (desconfio que é só para acompanhar as árvores do jardim na sagração da Primavera) e abrem-nos a porta para a sombra da tristeza. Do lado de dentro, Alexandre O'Neill, Daniel Faria, vários Pessoa, Fiama Hasse Pais Brandão, Pablo Neruda, Adélia Prado, Carlos Oliveira, e.e. cummings, Florbela Espanca, Rainer Marie Rilke, Octavio Paz, poetas celtas e orientais, edições a 2 € e outras encadernadas, poetas desconhecidos e autores clássicos, textos bilingues e capas a duas cores, chamam por nós. E nós entramos, seja para sair com um saco verde na mão que oculta aquilo que nos tentou, seja para trazer um verso a bailar na cabeça, um verso que vale por um livro na mão. Um verso que ninguém poderia ver, mas que faz o coração bater mais depressa. Foi o que aconteceu com o tapete de espanto do Ary dos Santos, primeiras palavras que saltaram para os olhos quando abri a sua obra poética. Dois dias depois, veio para a rua no tal saco verde, a falar com o O'Neill e com um dos heterónimos do Pessoa, atentamente escutados por Luís Falcão. Mas antes, e sempre, enquanto passeio entre as mesas, sem preocupação em decorar a morada dos poetas, penso que esta experiência tem algo de comparável a uma curta visita a uma igreja, que por vezes gosto de fazer. Nas igrejas, quando olho para as paredes decoradas com luminosos vitrais que evocam momentos de esperança e quiçá de alegria e respiro a atmosfera e o cheiro a madeira e sofrimento que emana dos bancos, comovo-me com a consciência de que o espaço está decorado com infinitas camadas de pele para o qual seres humanos deslocaram todo o seu sentir. E é assim que me sinto, neste santuário improvisado da poesia, entrando dentro da vida, do coração, do desespero, da pele, da breve alegria, do sangue e, repito, da vida destes homens e mulheres que nos mostram, mesmo sem de nós saberem o nome ou a flor preferida e desconhecendo se algum dia o poderemos entender, o seu fazer da poesia num tear de nostalgia. A sombra da sua espantosa tristeza, à sombra das árvores centenárias do meu jardim.