terça-feira, 24 de março de 2009

De olhos bem fechados

Está aí alguém? Desculpem perguntar, mas estou sem olhos. Ainda não escolhi quais vou usar hoje. E o que se pode ver sem olhos, se a visão é a impossibilidade de não ver? Ainda bem que me deixaram já com a boca colocada no devido lugar. Assim, pelo menos, posso falar. Deverei antes perguntar se me querem ouvir? É tão difícil fazer um bom anúncio, daqueles que obrigam os olhos que ainda não tenho a parar numa página, como se uma mão vinda de dentro rasgasse o papel da própria revista e agarrasse o leitor à força. E é fácil explicar porquê. Um anúncio é a demonstração inesperada de uma promessa quase sempre banal, nem que o seja à força de se ter repetido vezes sem conta. Sei do que falo. Ando há mais de dez anos a prometer entretenimento sem fim. E se o dissesse sempre da mesma forma, já ninguém seria contaminado pela minha mensagem. Por isso, venho falar-vos agora de rostos em composição, de novas formas de humanidade. Tenho a humanidade inteira fechada no meu rosto sem olhos, nestes olhos de olhar perfurado. A minha boca, já o devem ter percebido, é uma miragem numa cavidade de que escapam segredos como estes que estou a contar. Tenho um armário cheio de próteses de orgãos faciais com as quais poderia construir um catálogo-tipo da tribo a que sonho pertencer. Ando à procura do meu rosto. Do outro em mim. De ti. Para tudo o resto ter um ar credível, estou num apartamento com aquecimento, livros empilhados e uma caixa de lenços de papel - vestígios do meu banal quotidiano quando tenho o rosto de um estudante de medicina na faculdade. A tecnologia revela a minha falta de humanidade, mas eu insisto em reconstruir o meu rosto, como um cirurgião plástico. Está tudo previsto. Quem vou ser hoje? Tenho orifícios por preencher, fragmentos de histórias excitantes por viver. As mil e uma faces do jogo devoram-me. Para te livrares de mim, basta fechares os olhos ou mudares de página. Para me livrar de ti, basta entrar no jogo. Mas ainda não ouvi a resposta. Está aí alguém, ou estás a jogar comigo? Não sabes que ouvimos de maneira diferente de olhos fechados? Aproveita e responde.

Texto editado na Egoísta em 2005