quarta-feira, 25 de março de 2009

Isto não é o que parece

Vamos fingir. Vamos fingir que sou uma mulher apanhada pelo marido em flagrante adultério. Quantas vezes a publicidade não se inspira na vida real? Conheço um publicitário que defende serem os melhores anúncios aqueles que veiculam uma verdade inesperada. E eu concordo, enquanto a sombra do teu corpo abre a porta do nosso quarto. Desta vez, não tenho como escapar. Achavas mesmo que não havia mais ninguém? Como poderia suportar sete anos de um monótono casamento sem te trair? Tudo começou no dia em que o prazer se tornou dever e te expulsei da minha imaginação. Como se tivesses perdido tudo o que gostava em ti, à medida que te fui conhecendo. O hábito e a lógica maçam-me. E se o amor mata o tempo, o tempo mata o amor. Estás a entrar no quarto e vais-me descobrir com uma roupa interior que guardo para estes momentos de prazer secretos, rodeada pelos símbolos do comando da consola. Espero que não me peças de volta todas as horas que estive a jogar, ainda por cima com a tua PS2. É como se te tivesse traído com o teu melhor amigo. Gostava que, ao menos, não fingisses estar com ciúmes. O ciúme não é amor, a não ser que seja amor-próprio. Nas revistas que leio quando estamos deitados lado a lado nesta mesma cama, sem nada para dizer um ao outro, discute-se se o verdadeiro adultério é o físico ou o espiritual. Parece que as mulheres o desculpam melhor na sua versão física, sorte a vossa. Mas para teu azar, este caso há muito escapou à definição clássica de adultério. Já não é uma relação circunstancial e de baixo envolvimento emocional. Estou viciada na excitação deste jogo sem fim, em que estranhamente ganho sempre, seja devoradora ou submissa, presa ou predadora. Se soubesses o prazer que dele extraio, nunca mais me perdoavas. Sou uma coleccionadora de jogos e a PS2 tem todas as qualidades que tu não tens. É possível que não me perdoes. Mesmo assim, vou dizer-to: a Playstation não significa nada para mim. Foram as tuas viagens de negócios e a monotonia do nosso casamento que me obrigaram a isto. Apenas queria um corpo a que me enroscar, como uma gata mimada. Alem do mais, isto não é o que parece. Soa-te estranhamente familiar? Acho que foi exactamente o que te disse da última vez. Mas este jogo é novo. Comprei-o ontem. Gostava de me esconder debaixo da cama, mas estou presa à minha fantasia. Vais fingir que acreditas nas minha mentiras? Esse tem sido o segredo do nosso casamento. Essa talvez seja a alma da publicidade.

Editado na Egoísta em 2005