sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O dia em que me apaixonei por Wittgenstein


Aqui e acolá, ao vivo e por escrito, têm-me questionado: porquê a namorada de Wittgenstein? Excluindo a resposta mais fácil, que seria outra pergunta: porque não? e a resposta superficial, uma qualquer variante do achei divertido fazer-me passar por namorada de um homem que nem sequer gostava de mulheres, reformulo a pergunta. Qual foi o dia em que me apaixonei por Wittgenstein? (como se alguém soubesse dizer com data e precisão o dia em que nos apaixonamos). Talvez no dia em que decidi estudar filosofia. Ou terá sido um ano antes, quando alguém se referiu a ele como um filósofo difícil e excêntrico, numa sala de aula? Pensando bem, foi quando percebi, sem disso ter aquela consciência já próxima das palavras, que ele era, de todos os filósofos que me tinham apresentado, o mais humano. Humano, demasiado humano, ao pé dele os outros pensadores pareciam sistemas com pés, seres de um mundo de papel, humanos a quem tinham colocado outro cérebro no lugar do coração. A sua vida, preenchida com factos e circunstâncias que não explicam a sua obra, dava ela própria um romance com grande interesse literário. Como não me apaixonar por um homem assim? 
Wittgenstein nasceu numa família brilhante e com tendências depressivas, profundamente ligada ao mundo artístico e cultural da Viena fin-de-siècle. Klimt e Mahler eram visitas do palácio onde vivia e a sua família frequentava o círculo de Freud, Kokoschka e Adolf Loos. Ao contrário do título da obra-prima de Robert Musil, passado na sua Viena natal, Wittgenstein era um homem com qualidades. Com apenas 9 anos, inventou uma máquina de costura, provavelmente para a sua mãe. Mais tarde, alistou-se como voluntário no exército austríaco e combateu com heroísmo na 1ª Grande Guerra. Ao longo da sua vida, fez vários gestos de renúncia, como a renúncia à enorme fortuna de família e o exílio na Noruega como professor primário ou a renúncia à universidade de Cambridge, para dar aulas numa pequena escola primária de província. Foi o mais novo de oito irmãos, três deles suicidaram-se e outro, para quem Ravel compôs o Concerto Para Mão Esquerda, voltou sem um braço da guerra. Uma das suas irmãs era discípula de Freud e foi retratada por Klimt. O seu modo peculiar de ser socrático revela-se na necessidade superiormente maior de perguntar do que de responder e na missão de ensinar os alunos a pensar. As suas aulas, exercícios de puro pensamento, sempre sem notas nem preparação prévia, provocavam entusiasmo e admiração. Quando não estava em Cambridge a encantar alunos e professores catedráticos, fazendo perguntas desconcertantes ou procurando um hipopótamo debaixo das mesas na sala de aula, dedicava-se a actividades aparentemente banais. Foi ainda jardineiro num mosteiro e revelou a sua vocação de arquitecto, construindo a casa de uma das irmãs.
A sua vida obscura alimenta-se de histórias como esta: ao longo da sua vida, isola-se numa pequena cabana de madeira perto de uma aldeia na Noruega, onde pensa e escreve sem ser incomodado. A filosofia é uma actividade, uma terapêutica da linguagem e se é com palavras que vivemos e pensamos, é preciso lutar contra o seu enfeitiçamento. As Investigações Filosóficas, editadas postumamente, reúnem 16 anos de pensamentos do filósofo e têm algo de Alice no País das Maravilhas, na busca do sentido último dos jogos de linguagem, com as suas frases densas e de uma beleza austera. Wittgenstein põe tudo em causa e admite o indizível. Com os seus aforismos tenta apanhar uma verdade essencial como quem apanha uma espécie de borboleta rara numa rede de obscuras palavras. As suas metáforas que explicam a lógica do mundo podem ler-se quase como poesia e o apelo místico do silêncio revela-se nos seus aforismos, alguns deles semelhantes a koans orientais. A sua vida solitária lembra um monge e a sua lucidez confirma um génio. Foi perdendo muitas palavras pelo caminho para chegar à pergunta inicial e tocar o enigma do mundo. Construiu o seu silêncio e deixou-nos nas mãos, em cada palavra lida, a suspeita de que nunca entenderemos uma das personalidades mais estranhas e fascinantes que habitaram o nosso mundo e o nosso pensamento. As palavras do filósofo que queria ser lido lentamente ainda hoje rangem no sótão do nosso espírito. Que silêncio levou ele consigo? Que palavras poderia ter escrito se tivesse vivido mais um dia? A última afirmação do Tractatus Logico-Philosophicus, única obra publicada em vida, sugere a resposta a estas e outras perguntas: “Acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio”. Talvez a pergunta sobre o nome do blogue tenha ficado respondida. Ou devia ter permanecido em silêncio?