Não acreditam? São mortes pequenas, é certo, e por isso, todas juntas, não somam uma morte grande, a verdadeira morte. Conhecem a expressão "petit mort"? O copywriter que me inventou lembrou-se dela porque tinha lido recentemente "A História Íntima do Orgasmo" e foi assim que eu nasci de duas palavras, elas próprias pequenas. Para quem não saiba, "petit mort" é o sentimento de vazio e tristeza que invade os humanos após a satisfação do desejo sexual. O director de arte desconhecia a expressão, mas como fazer um anúncio é um trabalho a dois, apareceram-lhe logo algumas imagens interessantes diante dos olhos. Nasci neste anúncio, como uma "petite fille" que brinca no seu quarto com a "petit mort". Claro que não podia ser uma rapariga qualquer. Tinha de ser eu, parecida com a namorada do director de arte, uma parisiense sofisticada, pálida e alourada, que trabalha como designer numa agência da concorrência. Escolheram-me no casting porque mesmo quando faço uma expressão inocente pareço perversa. Vestiram-me uma camisa de noite branca, levaram-me para um quarto quase branco e sentaram-me em cima de um edredão com flores avermelhadas (as flores do mal?) para emprestar romantismo e feminilidade ao cenário. Pediram-me para segurar uma pequena foice nos dedos, a fingir que brincava com um simulacro da morte, que apenas me foi colocado nas mãos dois dias depois de tirada a fotografia, em pós-produção. Construiram uma morte tridimensional - um minúsculo esqueleto vestido de preto (como se tivesse corpo), que agora balanceia docemente na lâmina da foice e na ponta dos meus dedos. E por fim, disseram-me algo estranho: finge que és um fantasma em êxtase, que engana a vida brincando à morte. Então, compus a minha personagem. Chamo-me Alice e sou uma estudante da Sorbonne que convoca todas as noites a morte na hora mais escura e solitária. Os rapazes maçam-me e aquilo a que se convencionou chamar amor (como se o amor pudesse ser convencional) entedia-me. Tranco-me no quarto e deixo a minha mãe pensar que estou a estudar Roland Barthes e Gilles Deleuze enquanto extraio indescritíveis prazeres da minha PS2. Não sei o que vocês pensam, mas acho que apenas se devia morrer na cama, lugar onde habitualmente se nasce. Nunca ouviram dizer que em cada berço há um túmulo? E já agora, gostava de vos perguntar a vocês que têm existência real: são mortos que vivem ou vivos que morrem? Não sabem responder? Não admira. No fundo, ninguém acredita na sua própria morte. Mas não pensem demasiado no assunto. A morte deve ser muito boa. Nunca ninguém de lá voltou. E agora, deixem-me voltar à PS2.
Texto editado na Alice ccp em 2005