quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O fim de tarde de um escritor


Fazia-o mais alto e muito mais falador. Mas o escritor começou por avisar que não sentia o que dizia quando falava em inglês. E foi em inglês que se ia esquivando, de forma quase ostensiva, às perguntas vindas do seu lado esquerdo (Pedro Mexia) e do seu lado direito (João Lopes), assim como da frente (o público que enchia o espaço na Fnac do Chiado). A sua timidez cansada podia confundir-se erradamente com antipatia, e Peter Handke ia dando respostas curtas ou anti-respostas, quem sabe para desafiar os seus interlocutores e ouvintes: “Para me lembrar, teria de beber um pouco de vinho”. Ou: “o que interessa o que penso sobre as minhas peças de teatro?” Ou ainda: “a pergunta é muito boa e a resposta nunca o será”. Talvez fosse apenas o seu cepticismo a calar-se. “Ser céptico é a minha vida, o meu destino. Agora tenho um destino. Não andava à procura dele, mas encontrei-o. Um escritor precisa de ter um destino”. Tal como precisa de sofrer dolorosas metamorfoses. Falou-se da Europa central como “conceito meteorológico”, da mulher canhota e do guarda-redes angustiado antes do penalty, de Ionesco e Beckett. O escritor, que alternava momentos de fadiga apática com outros de entusiasmo muito contido, definiu-se como um playreader (e não como um theatregoer) e como um moviegoer. Na altura em que escreveu alguns sonhos e monólogos para “As Asas do Desejo”, de Wim Wenders, “um filme sobre a possibilidade dos anjos”, não sabia muito sobre anjos. Mas agora, mais de 20 anos depois, sente-se protegido por eles. “Preciso de muito silêncio interior, que não tenho, neste momento. Talvez quando sair daqui”. “O que acha dos ladrões de livros”? perguntou alguém na assistência. “Sou a favor dos ladrões de fruta, não de livros. Eu próprio já roubei maçãs. Tenho um título para um livro que ainda não escrevi nem sei se vou escrever, de que gosto muito: Die Obstdiebin (a roubadora de fruta). À melhor pergunta (vinda do seu lado esquerdo): Como é que alguém que gosta de Hofmannsthal, Wittgenstein e das questões da crise e limites da linguagem escreveu oitenta livros?, respondeu: “A linguagem é o meu problema, mas tenho de fingir que não o é. Houve um período da minha vida em que cada frase era um problema. Foi um período metafísico. Hoje finjo que já não tenho medo das palavras”. Talvez apenas tenha medo de tocar os outros com a linguagem. Ou lhe apetecesse, como o provérbio alemão que citou, a propósito de uma pergunta sobre Robert Walser e a justiça da posteridade, “falar ao ouvido de Deus” e não ao nosso. Neste breve encontro para um longo adeus, em que Handke se vestia de preto e de poucas palavras.