Em todas as casas, em todas as vidas, há imagens que se encontram domesticadas. São fotografias em família, da infância e até de seres num tempo em que ainda não existiam na nossa vida. Podem estar geometricamente dispostas em molduras em cima do piano negro, encarquilhadas na parede rugosa da sala ou até guardadas num álbum, embora regra geral estejam sempre à vista e façam parte da paisagem doméstica. Por mais nitidez que conservem, foram desbotadas pelo tempo e retocadas pela memória. Mas isso nem sequer nos importa. Já as vimos tantas vezes que as saberíamos descrever de olhos fechado. Tal como as conseguimos ignorar de olhos abertos. Estão domesticadas pelo chicote do tempo e amaciadas pelo bálsamo do olhar. A função destas duas lentes? Protegerem-nos de acessos de ligeira melancolia ou profunda tristeza, ao contemplar estas vidas já desaparecidas. Mas se por acaso os olhos descobrem, em sincronia com as mãos, uma fotografia há muito não tocada (pode ser na página 67 de um livro de Nietzsche, nas arrumações das gavetas da escrivaninha de cerejeira ou numa pasta de enigmático nome no desktop do computador), é provável que essa visão rasgue o nosso coração. A memória adormecida tinge-se de sangue, ganha cheiro e começa a espreguiçar-se qual felino predador. Os seres fotografados saltam das imagens para a vida em câmara lenta, rompendo uma imobilidade ensaiada durante anos. E isso é quase tão chocante com ver um morto a atravessar a rua diante dos nossos olhos ou irmos contra ele ao virar da esquina. Logo nós, que até assistimos ao seu funeral e desde então choramos baixinho a sua ausência. As fotografias não deviam aparecer sem bater à porta. Será que não sabem como o tempo magoa os olhos que as mãos escondem?