Era uma vez um jovem casal, que entretanto já é menos jovem e talvez até já nem seja casal. Então, habitava a mesma casa e não tinha dinheiro para gastar em móveis. Como juntos, tinham muito mais livros do que dinheiro, decidiram criar os móveis da casa utilizando-os como matéria-prima e criando um design sui generis. A mesa, as cadeiras e até peças que pediam mais flexibilidade e conforto, como o sofá ou a cama, eram feitos de pilhas de livros. Os móveis tinham nomes como a mesa de telefone existencialista, cujas pernas eram feitas com os livros de Jean-Paul Sartre e Vergílio Ferreira e um tampo com a obra completa de Simone de Beauvoir, Heidegger e Husserl. A mesa de cozinha linguística era feita com livros em hard cover de Saussure, Kristeva, Jackobson e vários números da revista de Comunicação e Linguagens. A cadeira absurda era exclusivamente composta pela obra de Kierkegaard em tradução francesa e por livros de Camus, Kafka e Dostoiewski. A prateleira dicionário tinha todos os dicionários da casa, desde o Alemão - Português ao dicionário dos símbolos, do dicionário das superstições ao das etimologias. Parecia excelente para colocar alguns bibelots. E a cadeira Assírio & Alvim, habitualmente muito disputada pelas visitas da casa, era composta pela obra poética de Ruy Belo, Alexandre O’Neill, Herberto Helder e Fiama Hasse Pais Brandão. Os livros que tinham a dobrar (do tempo em que ainda não se tinham encontrado) formavam a cama de livros duplicados, com dois Palomar, duas Memórias de Adriano, dois O Amor e o Ocidente, duas Confissões de uma Máscara, dois Diários Mínimos (o 2ª volume), duas Mitologias, dois xix poemas, duas Crónicas Americanas, dois Nocturnos Indianos, duas Novas Cosmicómicas, duas Ficções, dois Paraísos Artificiais e dois Maias, entre muitos outros livros gémeos. Como um dos pés parecia instável, tiveram de fazer batota e colocar um único exemplar das Histórias para uma Noite de Calmaria a suster o peso de tanta literatura duplicada. Criaram ainda o sofá estóico, com as obras de Marco Aurélio, Epícteto e Séneca, assim como livros sobre esta corrente filosófica. E até tinham à entrada o banco policial negro, composto por camadas de livros da colecção Vampiro dos anos 70 e das edições Rififi de Dennis Mc Shade. Os nomes dos modelos dos móveis faziam parte do dicionário privado do casal, embora para quem os visitava, não fossem mais do que montes de livros por arrumar. Uma das grandes vantagens era que os móveis iam mudando de rosto, sempre que alguém tirava um livro do sítio e não paravam de surpreender o olhar. No dia a dia, a consulta dos livros exigia uma grande perícia, pois a qualquer momento as pilhas de livros podiam cair por terra. Às vezes, ela estava deitada no sofá estóico e ele precisava de consultar A Arte de Viver. Outras vezes, ela queria ler em voz alta um poema de Herberto Helder (Aos Amigos) e a sua maior amiga estava sentada na cadeira Assírio & Alvim. Houve uma noite em que durante um jantar entre amigos na mesa poética, um tira-teimas por causa do nome da editora de O Barco Bêbado (seria a etc ou a Hiena?) quase fez com que o robalo com puré de batata se estatelasse no soalho de madeira corrida. Isto já para não falar daquele serão em que alguém lia a primeira frase de um livro e os outros tinham de adivinhar de que obra se tratava. Nessa noite, a casa ficou realmente desarrumada. Os amigos decidiram oferecer-lhes uma enorme estante no Natal. Era o primeiro móvel da casa. Talvez o único. As suas prateleiras permaneceram vazias.