sexta-feira, 27 de março de 2009

Querem que me dispa?

Pediram para me apresentar. É a primeira vez que me dispo em público e é bem provável que seja a última. Mas já que me deram tempo de antena, gostava de explicar por que estou aqui: para demonstrar que as mulheres gostam cada vez mais de jogar videojogos. Ah, mas importa acrescentar: da marca Playstation. Sim, porque por muito pequeno que apareça o logótipo, símbolo da marca, ele é e será sempre a razão de ser do anúncio. Já vos consegui chamar atenção? A estranheza do meu corpo, que todos os dias visto, como se a pele não lhe chegasse, prendeu o vosso olhar? (Só por curiosidade: sabiam que a pele de um corpo, completamente esticada, ocupa uma cama de casal?) Sou um personagem conceito e vivo numa superfície digital. O meu corpo caiu num jogo. Preciso de roupas que me protejam da monotonia dos dias. Visto o meu corpo com a pele dos heróis como quem veste uma paisagem. Sei que acham o meu corpo estranho. Sou uma mulher, mas tenho o tronco atlético, sólido e assexuado de um homem e os braços demasiado musculados. Como não imagino quem sou, prefiro descrever-me pelos personagens com quem partilho o sabor da imortalidade. A ilusão é o princípio mais igualitário que existe. Somos todos iguais. Todos podemos ser tudo. Sou o homem-aranha. Sou o conquistador de galáxias no céu e de tesouros no fundo do mar. Já pilotei aviões de combate e lutei com dragões. Vivi em castelos medievais com masmorras e passagens secretas e deslizei pelos esgotos subterrâneos de uma cidade futurista. Encarno os personagens que imagino ser com violência e êxtase num corpo que já não é meu. Penso que domino o mundo. Mas, e se o jogo fosse precisamente esse: o de me fazer acreditar que sou o criador da máquina, quando não passo de um operador? Por detrás do jogo, há alguém escondido que se ri de mim. Apetecia-me virar a minha pele ao contrário. Nem que fosse para descobrir que ela é o que tenho de mais profundo. Como se os jogos existissem antes de mim e eu tivesse nascido para lhes dar corpo. Por favor, não me digam que não sou real. Até como maçãs vermelhas e pão com sementes de sésamo. Mas não acreditem em tudo o que digo. Sou apenas um anúncio para vender videojogos. Ah, mas importa acrescentar: da PS2.

Publicado na Egoísta em 2005